Graves distorções nos pagamentos de direitos autorais e poder sem limites de conglomerados como Google/YouTube são alvo de diferentes iniciativas que podem pautar a nova normativa
Por Alessandro Soler, de Madri
A União Europeia lançou, em setembro do ano passado, uma proposta de reforma da sua Diretiva de Propriedade Intelectual (publicada originalmente em 2001) para adequá-la à era digital. Desde então, uma série de reuniões e debates têm se dado no âmbito do Parlamento Europeu, onde já se constrói o rascunho de uma normativa continental que equilibre os interesses dos criadores e dos principais players do mercado, influenciando futuras legislações sobre o tema em diversos países, inclusive o Brasil. Tanto no que toca ao setor jornalístico e editorial quanto no que se refere à produção audiovisual, o principal desafio é diminuir o poder dos grandes conglomerados da internet (Google/YouTube/Vevo/GoogleNews, Facebook, Spotify, Vimeo) e “reempoderar” os criadores, verdadeiros detentores dos direitos autorais, enfraquecidos pela dinâmica de reprodução descontrolada de suas obras.
No caso da música, os autores se queixam principalmente da injusta e desproporcional transferência de valor às plataformas de UUC (user uploaded content, ou conteúdo carregado pelo usuário), das quais a mais emblemática é o YouTube. Escudando-se em mecanismos de safe harbour (ou porto-seguro) existentes atualmente nas legislações europeias e estadunidense, o YouTube/Vevo e o Vimeo, só para ficar em dois exemplos, alegam não ser responsáveis pelos conteúdos publicados por seus usuários, o que os eximiria de punições no caso de carregamentos ilegais (piratas) bem como do pagamento adequado de direitos autorais. E o pior é que, à ausência de leis mais claras, a Justiça na Europa e nos EUA tem, muitas vezes, dado a razão aos gigantes da web.
Somente entre 2014 e 2015, segundo estudo conduzido pela consultoria norte-americana MIDiA, o YouTube/Vevo, com mais de um bilhão de usuários, experimentou um salto de 132% no número de visualizações de vídeos, ao passo que o valor total de transferência aos detentores de direitos autorais cresceu só 11%. Isso significa que a taxa de pagamento por stream ali, que já era excepcionalmente baixa — US$ 0,002, ou 10% de dois centavos de dólar — caiu para menos da metade. Só para se ter uma ideia, o Spotify, eternamente na lista de reclamações dos autores por também pagar pouco, comprovadamente transfere oito vezes mais que o YouTube.
Em seu site, o YouTube/Vevo, uma das joias da coroa do todo-poderoso conglomerado Google, alega ter pagado US$ 2 bilhões em direitos autorais mundo afora em 2016. Isso representaria algo como US$ 2 por usuário, contra os US$ 18 que o Spotify paga à indústria. O problema, dizem especialistas, é a falta de transparência. Como publicamos no último dia 7 aqui no site, o Spotify, com faturamento de US$ 3,1 bilhões e valor de mercado de US$ 13 bilhões em 2016, alega estar sempre “no vermelho”, ano após ano. “Essa é a malandragem. Se estão no vermelho, é mais fácil não pagar aos autores. Mas quem está ficando com o dinheiro?”, pergunta José María Montes, membro da sociedade de gestão espanhola Aisge envolvido na campanha Fair Internet for Performers (internet justa para os intérpretes), que reúne mais de 500 mil artistas europeus.
Para Mark Kitcatt, diretor dos selos Popstock e Everlasting e membro das associações de música independente UFI e Impala, essa é uma das principais questões que devem ser abordadas na reforma da Diretiva. “Não sei dizer se os pagamentos (de serviços como Spotify, Deezer ou YouTube) são justos. Justa, mesmo, a lei só será quando pudermos negociar de igual para igual.” De acordo com ele, o principal problema atualmente é o YouTube, que opera num limbo legal. “Eles simplesmente oferecem música sem pedir permissão aos criadores, dizendo-se não responsáveis pela publicação. E é impossível retirá-la, são necessárias dezenas de pessoas denunciando que a publicação é ilegal.”
No último dia 30 de maio, o fórum Meet the Authors, organizado em Bruxelas pelo Grupo de Sociedades Europeias de Autores e Compositores (Gesac), que reúne 32 entidades de gestão coletiva de 27 países, com mais de um milhão de criadores de música, filmes e vídeos, literatura e artes cênicas, publicou um manifesto em que pede não só a correção das distorções na nova normativa como seu fim imediato. “Essas plataformas fizeram seus negócios florescerem a partir do desejo das pessoas de acessar e compartilhar nossos trabalhos”, dizem os autores no manifesto, “razão pela qual não deveriam fazer com que o ônus da falta de pagamento recaia sobre nós.” “É urgente que plataformas como YouTube sejam enquadradas nas leis de direitos autorais, ao reproduzir nossos conteúdos e fazê-los acessíveis; e que o regime de safe harbour não seja aplicado a elas”, prega o documento em outro trecho.
Enquanto a União Europeia (e a imensa maioria dos principais mercados) ainda não dispõem de legislações que contemplem estes problemas, iniciativas dos autores ajudam a provar que a pressão pode conseguir resultados. Em 2009, a Gema, principal sociedade de gestão coletiva da Alemanha, havia proibido ao YouTube publicar vídeos licenciados em território alemão, inclusive com bloqueio de visualização. Depois de sete anos de batalha, em outubro do ano passado ambas as partes chegaram a um acordo, de valor não divulgado, mas que pode ser imaginado, já que, em seu último balanço, a Gema informou ter distribuído € 1,024 bilhão aos seus associados, contra € 893 milhões no exercício anterior.
Apesar de vitórias como essa, a luta legal não deverá ser fácil. “Tínhamos melhores perspectivas antes, mas o atual Parlamento Europeu está muito fragmentado, cheio de discursos contraditórios. E, desde que assumiu (Jean-Claude) Juncker (presidente da Comissão Europeia, o órgão executivo da União Europeia), a postura passou a ser de total alinhamento com as multinacionais tecnológicas, uma dependência descarada do setor”, ataca José María Montes. “Infelizmente, a lógica do livre mercado vem predominando sobre a produção artística.”