Integrante do mítico grupo Os Tincoãs fala sobre sua obra, a experiência em Angola e a afirmação da ancestralidade africana
Por Kamille Viola, do Rio
Integrante do finado grupo Os Tincoãs, influência de diversos artistas, o cantor e compositor baiano Mateus Aleluia, de 73 anos, lança seu segundo álbum solo, "Fogueira Doce". O disco vem à luz somente sete anos depois do trabalho de estreia da nova fase do artista, "Cinco Sentidos" — um hiato grande demais para os fãs.
"Se você for observar bem, desde a época dos Tincoãs foi assim: 'Os Tincoãs' (1973), 'O Africanto dos Tincoãs' (1975), 'Os Tincoãs' (1977), 'Dadinho e Mateus' (1986)... Foram quatro LPs em toda a nossa carreira, e um disco que não chegou a ser lançado ('Afro Canto Coral Barroco', com participação do coral dos Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro, sob a regência do maestro Leonardo Bruno, que saiu somente em 2003, 21 anos depois de ser gravado)", pontua Aleluia. "Não existe facilidade para realizar um trabalho, apesar de ser um trabalho elogiado pelas pessoas. Só lancei disco solo depois de sete anos que eu estava no Brasil e agora, sete anos depois, lanço outro. Vamos ver se a gente consegue sensibilizar o mercado para poder lançar com mais frequência, num tempo mais curto."
Os Tincoãs — nome inspirado em um pássaro do Cerrado — surgiram em Cachoeiro, no Recôncavo Baiano, como um trio vocal. Em 1961, lançaram seu primeiro disco, "Meu Último Bolero". Mateus Aleluia só entraria para o grupo em 1963, com a saída de Erivaldo. Com essa formação, o trio mudaria de rumo, adaptando os cantos de candomblé, sambas de roda e cantos sacros católicos, resultando na sonoridade de forte acento afro que os eternizou. O primeiro trabalho dessa nova fase, batizado com o nome do trio, seria lançado somente em 1973. Em 1981, João Gilberto regravou "Cordeiro de Nanã" (do álbum de 1977 do grupo, também chamado "Os Tincoãs"), no LP "Brasil", fazendo com que a obra de seus conterrâneos caísse nas graças da classe artística.
"Fogueira Doce", apresentado em primeira mão no Rio de Janeiro dia 15 de fevereiro, no Sesc Copacabana, segue a mesma linha que marcou a carreira do grupo, com forte influência dos 19 anos que Mateus Aleluia viveu em Angola. Além do artista, de voz carregada de ancestralidade, participam do trabalho seus dois filhos: o brasileiro Mateus Aleluia Filho, trompete e flugelhorn, e a angolana Fabiana Aleluia, com uma doce voz que contrasta lindamente com a do pai. O álbum inclusive conta com uma faixa, "O Serpentear da Natureza", cantada em iorubá. "'Fogueira Doce'é uma análise de como era a vida política no Brasil na época e lá em Angola, que também tinha conturbação. Dentro daquilo tudo, eu vejo aquele sol madrugando, como se fosse a gema do ovo saindo da casca. Diante de tanta coisa que eu não gostava, que era uma guerra, aparece uma visão dessas", poetiza. "Em outro momento, foi ao contrário, em um por do sol: parecia a gema se recolhendo de novo para dentro da casca do ovo. Uma comparação com a minha vida no Brasil, nada dando certo. Lá eu refaço a minha vida, criei a família, encontrei a Rosa e me tornei um roseiro. Nossos traumas Freud não explica, ele apenas nos cutuca", brinca Aleluia, citando parte da letra e sua mulher, a angolana Rosa.
A volta ao Brasil, em 2002, foi como a ida: casual, sem pensar muito. "As coisas, da maneira que aconteceram, não decidimos. Foi a vida que nos colocou lá. Eu vim passar 60 dias de férias. Eu e minha filha, angolana, que também não veio para ficar. Depois de um tempo, ficamos. E Rosinha, minha mulher, não pôde vir de vez. Então nós ficamos lá e cá", explica Aleluia. "Para nós, Angola é como se fosse uma segunda terra. É uma felicidade você ter duas casas", comemora ele, que hoje vive no Rio Vermelho, em Salvador.
De volta ao Brasil, Aleluia participou do documentário "O Milagre do Candeal" (2004), do espanhol Fernando Trueba. No ano passado, foi um dos ogãs da execução do Hino Nacional no encerramento das Olimpíadas, no Rio. Alê Siqueira, idealizador da performance, produziu "Fogueira Doce", gravado em 2016 de forma independente. O disco traz doze faixas autorais, sendo duas compostas com Dadinho — as releituras de "Obatotô" e "Filha! Diga o que vê?" — e uma parceria com Carlinhos Brown, "Convênio no Orum".
Mestre de cerimônia do Festival Perc Pan deste ano em Salvador, Mateus Aleluia vê com bons olhos o legado do Tincoãs nos dias de hoje, em que cada vez mais artistas têm a música afro-brasileira como influência. "Nós, quando começamos, éramos naturalmente assim, sem intenção de politizar. O próprio candomblé sobreviveu em função dessa naturalidade de ser. Não é preciso a pessoa ser do candomblé para ter uma cultura do candomblé: ela come acarajé e vatapá, comidas que foram adaptadas dos ritos", compara. "Hoje, me alegro em ver que a nossa juventude está mais afirmada, quando ela usa o cabelo natural... Isso não quer dizer que, quando alguém não use, não esteja. Mas é que antigamente havia certo receio de as pessoas se mostrarem como são. E isso não faz sentido, afinal de contas, nós somos maioria. Agora, temos que ter uma estratégia, porque ainda não estamos na mesa de negociação, não temos quadro suficiente para ter uma presença marcante nas decisões do país. Precisamos de uma emancipação real do nosso povo. É a única forma de acabar com a violência, é diminuindo essa distância entre as classes", analisa.