Sony anuncia lançamento de canção “chupada” de obras dos Beatles e levanta debate sobre propriedade intelectual na era da inteligência artificial
Por Alessandro Soler, de Madri
O anúncio do lançamento de “Daddy's Car”, primeira música gerada por algoritmos, que a gigante japonesa Sony pretende publicar no início do ano que vem, levanta um debate sobre direitos autorais na era dos robôs – um tema que parece ficção científica mas que não poucos especialistas veem, muito mais cedo do que tarde, na ordem do dia do mundo musical. Nos últimos anos, o uso de combinações de dados num sistema “lógico” sob o guarda-chuva da chamada inteligência artificial ganhou as manchetes. Literalmente. Em março de 2014, um aplicativo desenvolvido por um repórter e programador do diário americano “Los Angeles Times” produziu, em poucos segundos e por meio de algoritmos, uma reportagem completa sobre um terremoto ocorrido na cidade de Los Angeles. Um programa desenvolvido pelo repórter, o Quakebot, inseriu a magnitude do tremor automaticamente a um texto previamente programado, incluindo informações sobre potenciais estragos e réplicas, garantindo que o “LA Times” soltasse a notícia muito tempo antes dos concorrentes.
Não foi um caso isolado. A agência de notícias Associated Press chegou a anunciar, no mesmo ano, que trabalharia com algoritmos para publicar notas simples sobre fatos – não reportagens mais complexas –, o que não a livrou de uma chuva de críticas partindo de pessoas que enxergam o uso de robôs como uma ameaça a um trabalho eminentemente intelectual. Em outra seara, escritórios de advocacia, principalmente nos Estados Unidos, já vêm usando a inteligência artificial para elaborar contratos com base em textos prévios. Agora, com a decisão da Sony de testar uma nova tecnologia na área musical criando uma composição – mas não a partir do zero, senão tendo como “inspiração” diferentes temas musicais dos Beatles – levanta sobrancelhas mundo afora por duas diferentes razões. A primeira é a suposição de que uma máquina poderá desenvolver, com o mesmo nível de sensibilidade e entrega artística, uma obra de arte, o que muitos detratores do projeto creem ser impossível. E, não menos importante: a quem iriam os direitos autorais de uma canção criada por um robô a partir de obras de uma banda real?
“O que quer que seja 'criado' por meio da inteligência artificial a partir de material prévio exige autorização e um pagamento pelo uso. Não há dúvida de que se está realizando um ato de exploração de direitos autorais alheios”, conceitua Joaquín Muñoz, um dos grandes especialistas europeus em Direito ligado a novas tecnologias e diretor da área na banca de advogados madrilenha Ontier. Ele também vê um potencial desrespeito aos direitos de reprodução no uso de acordes existentes quando incorporados a uma canção algorítmica.
No Brasil, segundo a nossa lei, essa também é a única interpretação possível: “Não há a mínima possibilidade de alguém manipular informação e requerer autoria. Pela lei brasileira atual, é impossível. Só se houver autorização para uso, aí neste caso o cara que manipula o software pode virar adaptador. Mas tem que ser previamente autorizado. Então, à luz da lei brasileira, não há outro caminho. Sem autorização prévia não se faria isso no Brasil. E isso independe do modelo tecnológico que for escolhido”, afirma o advogado Sydney Sanches, um dos maiores especialistas em direitos autorais no país.
“O problema é que, a menos que a empresa que reuniu esses trechos de canções numa nova 'obra' informe que o fez, vai ser muito difícil de os administradores do repertório original provarem o uso indevido”, opina outro especialista espanhol na área, Raúl Bercovitz, em entrevista ao portal de negócios Expansión. Ele sugere que as entidades de gestão de direitos autorais invistam em tecnologia e criem, elas mesmas, outros sistemas baseados em algoritmos para “varrer” novas criações em busca de plágios. O que abriria um novo e perigoso campo de disputas judiciais. Afinal, como provar uma cópia deliberada num mundo – o artístico – tão alegremente adepto das assertivas do químico francês Antoine Lavoisier segundo as quais “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma” (espertamente adaptadas para “tudo se copia” pelo nosso Chacrinha...).
A proteção aos direitos autorais nesse hipoteticamente paranoico mundo em que o uso de trechos inteiros de canções anteriores pode ser muito difícil de provar já é objeto de atenção de legisladores. A União Europeia elabora o esboço de uma Nova Diretiva Sobre Propriedade Intelectual que contempla um apartado sobre data mining, ou mineiração de dados, em tradução livre. Ou seja, sobre o processo de extração de informação em bases de dados. Até o momento, tal esqueleto de documento – que, eventualmente, irá a votação no Parlamento Europeu e, caso aprovado, seguirá para ratificação nos diferentes parlamentos nacionais do bloco continental – só permite a prática no caso de instituições de pesquisa que se comprometam a utilizar esses dados em pesquisas sem fins lucrativos. Não há nada, até o momento, sobre essa prática quando realizada por empresas que visem a ganhar dinheiro a partir de material alheio. Para o advogado espanhol Muñoz, é difícil que a normativa autorize essa exploração, ou mesmo tente estabelecer limites aceitáveis para ela, uma vez que poderia abrir uma “caixa de Pandora” cujo controle seria, no mínimo, muito difícil.
Mesmo no caso de uma hipotética composição totalmente realizada por um robô, as leis de que dispomos no mundo, hoje, não preveem direitos autorais a máquinas. No Brasil, por exemplo, a interpretação da Lei de Propriedade Intelectual atribuiria ao supervisor do processo eletrônico o copyright e os direitos de execução. “Óbvio que o robô não tem direito autoral algum, e isso no mundo todo. O autor é sempre uma pessoa”, reforça Sydney Sanches. “A obra é chamada de ‘criação de espirito’ porque requer um ser humano para caracterizá-la.”
Bercovitz teme que empresas que venham a explorar essas possibilidades ocultem o uso de trechos de outros autores “e concedam o mérito a uma pessoa de sua confiança para gerar e apropriar-se dos direitos autorais sobre as novas composições.” No caso da Sony, cuja editora Sony/ATV, é a administradora da obra dos Beatles, não deve haver grandes problemas. Mas a “caixa de Pandora” aventada pelos especialistas está prestes a ser perigosamente aberta.