Desentendimentos entre companheiros de criação na hora de autorizar certos usos da música são mais comuns do que se imagina e fazem pensar: antes de dividir uma música, é preciso debater e prever certas situações
Do Rio
Parceiros de composição musical costumam dizer que sua ligação é como um casamento. Não é. Vai muito além. Uma vez que a obra só cai em domínio público sete décadas contadas a partir do ano seguinte à morte do último cocriador, os usos que se farão dela dependerão da boa sintonia não só de quem a escreveu mas também de pelo menos duas ou até três gerações de herdeiros. E não são incomuns os casos em que tentativas de cessão da música, de inclusão num disco ou num projeto, de regravação ou de sincronização num produto audiovisual geram ruídos.
O mais recente, e público, envolve o hit “Vida Bandida”, escrito por Bernardo Vilhena e musicado por Lobão no final dos anos 1980. Os responsáveis pela trilha sonora da novela “Verão 90”, atualmente no ar na TV Globo, queriam incluir o clássico na trama e no disco que é lançado tradicionalmente com as músicas contidas na história. Ocorre que Lobão vetou o uso e fez uma postagem sobre isso, no último dia 21 de janeiro, numa rede social. “Eh eh eh... acabo de vetar Vida Bandida para ser executada numa novela da Globo... Que fofo!”, escreveu o músico e cantor, apoiador de uma campanha contra a emissora carioca nas redes sociais por discordar da cobertura do grupo sobre o governo de Jair Bolsonaro.
Vilhena, no entanto, não gostou do veto. De acordo com ele, o afastamento dos dois é por razões políticas. “Tudo começou quando critiquei o fato de ele cantar 'Vida Bandida' nos shows, mudando a letra para 'Dilma Bandida'”, descreve. “De fato é uma questão muito séria, porque fica essa vinculação, eu perco o controle sobre o que escrevi. Inclusive, essas letras todas eram poemas meus anteriores, que já estavam prontos antes de ele musicar... Eu acabo perdendo dinheiro. Mas o pior é ver uma obra minha usada para fazer política.”
A reportagem tentou contato com Lobão, sem sucesso. Vale lembrar que, como parceiro da canção em questão, Lobão tem o direito inalienável de determinar como e quando ela será usada. Trata-se do direito moral, que os titulares jamais perdem. Estabelecido pela Convenção de Berna, em 1886, e ratificado pelo Brasil em 1975, o direito moral torna a obra indissociável da personalidade do autor. Este pode vetar, por exemplo, quaisquer interferências e modificações — além de usos — que considere ofensivas a sua honra ou reputação, mesmo que tenha vendido ou cedido os direitos patrimoniais a terceiros. Ou seja, como as partes de uma música (letra, acordes e arranjos) são indissociáveis, ele tem todo o direito de vetar o uso integral dela caso não se sinta confortável com ele. Outra coisa é o uso apenas da letra, caso ela seja um poema comprovadamente criado anteriormente. Neste caso, o escritor/poeta pode autorizar o uso da letra, mas não da música como um todo.
Uma diferença política pode ser caso extremo, mas não é, nem de longe, a única fonte de ruídos entre parceiros. Discordâncias filosóficas podem emergir, por exemplo, na hora de autorizar a inclusão de uma música numa propaganda. Se um dos parceiros é vegetariano, certamente não se sentirá confortável por ver sua música ligada a um frigorífico. Mas há casos em que compositores não querem suas criações em propaganda alguma.
“Aconteceu comigo. Uma certa canção minha foi muitas vezes requisitada para publicidade. E o meu parceiro nela é avesso a que qualquer obra sua seja usada para fins comerciais. É direito dele. Mas, ao meu ver, quando você compõe algo com um parceiro, aquilo é um filho que não te pertence inteiramente. Na última tentativa de sincronização, a empresa anunciante nos ofereceu R$ 4 milhões. Bicho, foi duro, muito duro, perder R$ 2 milhões, algo que eu jamais ganhei de uma só vez”, comenta Robertinho do Recife, que diz ter superado o episódio e manter uma boa relação com o parceiro.
“Isso é coisa que a gente precisa conversar bastante, às vezes, antes de fazer as coisas. Claro que a gente só vai se deparar com esse tipo de situação na hora em que a música é requisitada para algo. Mas tudo tem que ser previsto. Conheço casos em que um dos parceiros queria percentual diferenciado do outro. Mas os direitos são iguais, poxa! Não importa se você fez letra ou música”, continua Robertinho, que faz uma observação: “Mesmo episódios assim não me fizeram mudar minhas regras de empatia, de estabelecimento de parcerias... Parceria é como namoro. Você gosta do jeito como o outro faz, você admira. Então, a consumação do namoro é a criação da música. Esse momento é lindo. A parte burocrática não deve, nunca, prevalecer. A arte é mais importante. Mas é fato, não se pode ignorar que trata-se de um casamento para além da vida.”
Ele tem toda a razão. Como já mencionamos, enquanto não transcorrem 70 anos iniciados no dia 1º de janeiro seguinte à morte do último dos parceiros, a canção não cai em domínio público. Ou seja, qualquer tipo de uso deve ser autorizado por todos os titulares — sem que se possa fazer muito além de recorrer à Justiça para tentar provar, por exemplo, a anterioridade da letra, no caso de o autor dos acordes vetar o uso.
Mas o que fica claro é que, se nesse casamento para além da vida, como descreve Robertinho, o “amor” foi previamente estudado, as situações futuras foram antevistas e não há grandes desentendimentos, a chance de um “felizes para sempre” é bem maior.