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2024, o ano que definirá o limite do direito autoral na inteligência artificial
Publicado em 18/01/2024

Três futuras normativas em diferentes partes do mundo — entre elas o Brasil — marcarão a fronteira do uso de obras protegidas; entenda

Por Ricardo Silva, de São Paulo

Em mais um ano em que a inteligência artificial ocupará o centro das discussões nas indústrias culturais e criativas, parlamentos e governos de diferentes regiões do planeta finalmente caminham para tentar estabelecer o marco regulatório de uma tecnologia com potencial para transformar a criação como a conhecemos. Na União Europeia, no Reino Unido e no Brasil tramitam, em diferentes fases, novas normativas que abordam a questão da varredura de conteúdos protegidos por copyright para criar os sistemas de geração de conteúdos por inteligência artificial.

Saiba mais sobre cada um:

 

União Europeia

É, de longe, a região mais avançada no debate. Desde 8 de dezembro, quando o “triálogo” entre a Conselho Europeu, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu chegou a acordo-base para a futura lei sobre tema, o texto completo, com todos os detalhes, vem sendo redigido. A versão final ainda deverá passar por votação no Parlamento para validação, o que se espera que ocorra antes da chegada do verão europeu, em junho.

Muito vem se falando sobre os usos de IA que serão proibidos ou autorizados naquele continente quando for sancionada a nova lei. Mas, por ora, poucos detalhes são conhecidos sobre o capítulo relacionado à varredura de obras protegidas para a criação dos softwares de inteligência artificial generativa. No acordo-base de dezembro, a única menção ao tema pregava o “respeito à lei”.

Para juristas, “a lei”, no caso, é, sobretudo, a Diretiva Europeia de Direitos Autorais Digitais. Aprovada em março de 2019, a normativa tem dois artigos que poderão servir como base para a redação final da parte da mineração de conteúdos protegidos por copyright pelas empresas que desenvolvem inteligência artificial generativa.

São eles o artigo 15, que dá a produtores de conteúdos variados (como editores de jornais, redes de TV, administradores de sites de notícias e outros) o direito de serem sempre remunerados pelo uso digital de suas criações; e o artigo 17, que obriga agregadores de vídeos/textos (como YouTube e Google) a garantir que a difusão de conteúdos através dos seus sistemas respeite os direitos autorais e pague licenças.

“O que quer que seja 'criado' por meio da inteligência artificial a partir de material prévio exige autorização e um pagamento pelo uso. Não há dúvida de que se está realizando um ato de exploração de direitos autorais alheios”, sentenciou Joaquín Muñoz, advogado espanhol especialista em direito autoral digital do escritório Ontier, de Madri. “Espera-se que a lei da inteligência artificial reflita isso inequivocamente, garantindo aos criadores de conteúdos o mesmo nível de proteção que a Diretiva assegurou em 2019.”

Ainda é um mistério a extensão das exceções de copyright que o texto da futura lei trará. Internacionalmente, é consenso que as normativas sobre inteligência artificial tendem a liberar a exploração de obras protegidas por sistemas de IA educativos, sem fins lucrativos ou com finalidade de pesquisa científica. No Brasil, como você verá a seguir, essas isenções inclusive já vêm causando bastante polêmica.

Brasil

Desde o primeiro semestre do ano passado, tramita no Senado um projeto de lei (2.338/2023), chamado de Marco Legal da Inteligência Artificial, que se propõe a responder a muitas das dúvidas que o mundo inteiro tem sobre o alcance e os desdobramentos do uso massivo de sistemas de IA. Fruto de uma fusão de vários projetos sobre o tema, entre eles o PL 21/2020, apresentado na Câmara há quatro anos — quando o ChatGPT nem existia, e a IA generativa ainda não estava no foco —, o texto tramita atualmente na CTIA - Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil.

Ainda a receber emendas e alterações nesta fase de tramitação, o projeto traz, no artigo 42 do seu texto-base, uma série de previsões de isenção de pagamento de direitos autorais. O trecho diz assim: “Não constitui ofensa a direitos autorais a utilização automatizada de obras, como extração, reprodução, armazenamento e transformação, em processos de mineração de dados e textos em sistemas de inteligência artificial, nas atividades feitas por organizações e instituições de pesquisa, de jornalismo e por museus, arquivos e bibliotecas, desde que:

I – não tenha como objetivo a simples reprodução, exibição ou disseminação da obra original em si;

II – o uso ocorra na medida necessária para o objetivo a ser alcançado;

III – não prejudique de forma injustificada os interesses econômicos dos titulares; e

IV – não concorra com a exploração normal das obras.”

Para o advogado Dalton Morato, representante da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), o trecho é perigoso e dá margem a eventuais abusos no uso de obras protegidas sob a desculpa de que têm finalidade científica, de pesquisa ou jornalística. Ele vem denunciando publicamente a ausência de proteção aos autores do Marco Legal da Inteligência Artificial desde, pelo menos, a última Bienal do Livro do Rio, em setembro do ano passado.

“O Brasil será dos primeiros países a legislarem os usos de IA. Não entendemos a pressa. E isso sem ouvir os representantes das indústrias criativas. A obra gerada por IA pode vir a competir com um livro criado por um autor. Essa competição é leal, legítima? Não. No Brasil, estão querendo prestigiar as indústrias tecnológicas em prejuízo da indústria criativa”, afirmou.

A ABDR e outras entidades do setor de livros enviaram uma carta aos senadores manifestando suas preocupações. Segundo o documento, a Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário, estabelece que exceções à proteção do direito de reprodução, um direito exclusivo que requer autorização para qualquer utilização, apenas são possíveis mediante três requisitos: (1) que as exceções se apliquem apenas em certos casos especiais; (2) que não afetem a exploração normal da obra; e (3) que não cause um prejuízo injustificado aos interesses legítimos dos titulares de direitos.

Para os representantes do setor editorial, o artigo 42 fere esses três requisitos:

“A exceção proposta não se restringe a certos casos especiais. Pelo contrário. Em vez disso, permite usos generalizados e em larga escala (de textos protegidos pelos softwares de inteligência artificial generativa)”, diz o texto.

Ainda não há uma data para o projeto ser votado em plenário. Fique ligado nos canais informativos da UBC para ter mais informações sobre o tema nos próximos meses.

Reino Unido

Uma comissão do Executivo britânico, o Comitê de Cultural, Mídia e Esportes, vem debatendo o texto da futura normativa sobre IA generativa, que ainda poderá passar pelo Parlamento. Como ocorre no caso do Marco Legal brasileiro, o texto britânico também previa, até o ano passado, amplas exceções de copyright, permitindo que empresas desenvolvedoras dos softwares de programas como o ChatGPT (OpenAI), Claude (Anthropic), DeepMind (Google) etc. minerassem livremente obras protegidas sem pagar nada aos autores.

Algumas das muitas companhias que desenvolvem a IA generativa: mineração de obras protegidas, por ora, é livre

Pressionado, o governo britânico já havia mudado de parecer e anunciado que instituiria limites para esses exceções de copyright. No final da semana passada, depois de um questionamento formal enviado por representantes de criadores musicais, literários e outros, o governo do primeiro-ministro conservador Rishi Sunak voltou a se manifestar:

“A reprodução de obras protegidas por direitos autorais pela IA infringe os direitos autorais. A menos que seja permitido sob licença ou uma exceção pontual. O governo não está prosseguindo com sua proposta original de uma ampla exceção de direitos autorais para fazer a mineração de textos e dados”, afirmou o governo em resposta ao questionamento formal.

A manifestação pública foi celebrada pela comunidade das indústrias culturais e criativas. Outra prova da suposta boa-vontade de Downing Street (sede do Executivo) em relação ao tema é ter chamado representantes da sociedade de gestão coletiva BPI, do Conselho de Criadores de Música, da Associação de Editores de Música e da UK Music para integrar o comitê que vem discutindo a nova normativa.

“Ao envolver tanto a IA como os setores criativos neste processo, o objetivo é desenvolver um código de práticas equilibrado e pragmático que permitirá a ambos os setores crescer em parceria”, escreveu ainda o governo britânico na resposta.

Espera-se para o mês que vem a apresentação do relatório final da comissão. Como sexta economia do mundo em 2023 e terceiro maior mercado fonográfico, segundo a IFPI - Federação Internacional da Indústria Fonográfica, o Reino Unido tem peso internacional suficiente para influenciar outras normativas internacionais sobre o tema. Portanto, se mantiver a disposição de proteger os autores das obras usadas na mineração realizada pelos softwares de IA generativa, estará enviado uma mensagem potente ao resto do mundo que poderá se ver refletida em outras legislações.

LEIA MAIS: Reveja a reportagem de capa da Revista UBC #54, sobre inteligência artificial generativa


 

 



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