Não posso admitir que o meu trabalho contribua para pessoas, ideias e valores que combati a vida inteira
Retirado do portal O Globo
Salve Bernardo Mello Franco,
Ainda nem li o manifesto dos compositores sobre as paródias eleitorais, mas me permito algumas discordâncias sobre a sua coluna.
Como compositor que vive do seu trabalho, da exploração remunerada de sua criação, não me parece correto alguém usar a minha obra de graça e ainda deturpá-la para se beneficiar em uma eleição.
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Eu não ficaria nada feliz se os marqueteiros do Bolsonaro fizessem uma paródia da minha “Dancin’ days”, tipo:
“Abra suas asas/ solte suas feras/ sopre seu apito/ salve o nosso mito.”
Ou então:
“Garota eu vou pro Alvorada/ vou te salvar da cachorrada/ vou acabar a palhaçada/ o meu destino é Jair.”}
(as métricas e as rimas serão toscas, naturalmente)
Ou se meus amigos petistas pedissem a mim e ao Marcos e Paulo Sérgio Valle:
“Hoje é um novo dia/ de um novo tempo/ ele voltou/ nosso novo Lula/ é o velho Lula/ é o Lula eterno/ de todos nós...”
Imagine a ira sagrada do Chico se ouvisse:
Apesar de vocês (os artistas)/ o Brasil há de ser/ diferente/ o capitão tá na frente/ guiando a gente/ guiado por Deus.”
É justo isso? Usar a sua obra de arte para um trabalho sujo?
A regra é clara: quem tem autoridade sobre a obra é o autor.
Pode isso, ministro Luis Roberto Barroso?
Não, as Lojas Havan, ou qualquer outra, não podem fazer um comercial com uma paródia de alguma música sem pagar direitos e sem autorização. Por que algum candidato poderia na campanha?
Durante alguns anos, Roberto Carlos negou autorização para qualquer artista gravar suas músicas porque considerava que desgastavam seu repertório. Deu ruim. Palavra de rei volta atrás. Estavam popularizando e valorizando seu patrimônio.
Ninguém pode gravar uma música alheia sem autorização. É ilegal.
Não quero misturar assuntos diferentes, mas já que você tocou... Roberto Carlos estava realmente equivocado no caso da biografia de Paulo César Araújo, e dediquei três colunas com críticas duras a ele, mas no caso da paródia eleitoral, ele tinha toda razão, em defesa da integridade de sua obra. E das nossas.
A paródia é livre: para os humoristas, comédias, músicas de carnaval, gritos de torcida, roda de samba, forró, baile funk, para tudo. Menos para ganharem dinheiro com ela e para propaganda comercial ou eleitoral.
Criou-se uma situação bizarra:
Um Bolsonaro oferece um milhão de reais para usar “Como uma onda” como tema de campanha. Eu e Lulu negamos.
Ótimo: então eles fazem uma paródia vagabunda e usam de graça.
Não é só uma questão de direito patrimonial, mas moral. Não posso admitir que o meu trabalho contribua para pessoas, ideias e valores que combati a vida inteira.
Um grande abraço do leitor.
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