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Suspenso julgamento do uso de música em 'paródia' política
Publicado em 09/02/2022

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Ministro pede vista e adia decisão por tempo indeterminado; em manifesto, artistas pedem respeito às suas criações

Do Rio

Foto: Imprensa STJ

Iniciado nesta quarta-feira (9), mais de dois anos depois de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) liberar o uso de canções como "paródias" em campanhas políticas mesmo sem autorização dos seus autores, foi paralisado o julgamento do recurso movido pela editora EMI Songs do Brasil (atualmente propriedade da editora Sony/ATV) contestando a decisão. O relator, ministro Luís Felipe Salomão, chegou a emitir o seu voto, no qual não acolhe plenamente os argumentos dos autores - temerosos de que suas obras sejam usadas sem qualquer impedimento -, mas pelo menos estabelece condições para as paródias. Em seguida, o ministro Raul Araújo pediu vista, com o objetivo de analisar melhor a matéria e estabelecer limitações às paródias em outros âmbitos que não o político, já que a decisão vigente abre espaço para que músicas se tornem "paródias" em campanhas publicitárias e outras instâncias sem qualquer controle por parte dos seus criadores.

Como explica o advogado Sydney Sanches, especialista em direitos autorais e assessor jurídico da UBC, não há prazo para que o julgamento seja retomado. Isso só ocorrerá depois de o ministro Araújo analisar o processo. "O voto do relator, se não foi favorável aos autores, pelo menos limita um pouco as paródias ao exigir três condições: que elas tenham um uso excepcional, claro conteúdo criativo e não causem prejuízo aos titulares. Este último é um ponto interessante e ao qual podemos nos ater na hora de questionar os usos de músicas em paródias que não tiverem autorização", descreve Sanches, para quem, mesmo no caso de uma decisão desfavorável ao final do julgamento, caberá recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF): "Há um óbvio erro de entendimento do STJ. O tema aqui é que a criação artística e intelectual é protegida pela Constituição. Não se pode estabelecer um uso livre de obras criadas por outros sem ferir esta proteção." 

A associação Procure Saber e a União Brasileira de Editoras Musicais (Ubem) também participam da ação. As duas entidades forneceram informações aos juízes e ao processo para amparar a ideia de que a liberação de paródias sem qualquer controle num contexto político traria enormes prejuízos a quem cria música e vive legitimamente dos seus direitos autorais.

Um manifesto assinado por quase 400 compositores — de Gilberto Gil, Djavan e Adriana Calcanhotto a Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Milton Nascimento, de Emicida, Marisa Monte e Rita Lee a Samuel Rosa, Zeca Pagodinho e Guilherme Arantes — alerta sobre o risco dessa liberação para a atividade de criação musical e para a própria democracia. O entendimento de que qualquer tipo de uso pode ser visto como uma paródia (portanto, de uso livre) abriria uma caixa de Pandora, na opinião de artistas e especialistas, permitindo, por exemplo, que a publicidade empregasse livremente canções com letras alteradas sem qualquer pagamento. 

O que motivou a ação foi o uso, pelo palhaço e então deputado Tiririca, da canção “O Portão” (dos versos “Eu voltei, agora pra ficar/ Porque aqui, aqui é meu lugar”) com a letra alterada na sua campanha à reeleição. Representando os interesses de Erasmo e Roberto Carlos, autores da obra, a EMI/Sony recorreu à Justiça. Em novembro de 2019, a 3ª Turma do STJ deu razão a Tiririca, argumentando que as paródias, ou o direito de imitar canções, são permitidas pela  lei de direitos autorais (9.610/1998) e independem do contexto. A lei, contudo, não menciona campanhas políticas. 

“Uma decisão inexplicável. O absurdo chega ao ponto de fazer com que o autor veja, passivamente, sua obra associada a iniciativas repulsivas contra as quais lutou toda a sua vida como artista e cidadão”, criticou na época Aloysio Reis, diretor-geral da Sony/ATV Music Publishing Brazil.

Ele se referia à associação, sem qualquer controle, do nome do compositor aos de políticos com cujas ideias não concorda. Isso, no entendimento de juristas, é um evidente desrespeito ao direito moral, conceito previsto em tratados internacionais chancelados pelo Brasil segundo o qual, mesmo que vender seus direitos patrimoniais, um autor pode se opor ao uso de sua criação caso ele fira suas convicções ou sua honra.

A classe artística e representantes dos autores ainda têm esperança de que o julgamento do recurso da editora, com apoio da Ubem e Procure Saber, reverta a decisão anterior. Caso isso não ocorra, Sanches reforça o grave risco à própria democracia:

"Em 2019, a preocupação do Judiciário com eleições legítimas e um processo eleitoral transparente, livre da desinformação e fake news, já estava na pauta, mas era menor do que hoje. Nos últimos três anos, os atos atentatórios à democracia e ao processo eleitoral se intensificaram. O uso de obras musicais alteradas em campanhas eleitorais distorce o cenário politico-eleitoral, pois serve para enganar o eleitor ou cooptar eleitorado por meio de associação de conhecidas canções e seus autores e intérpretes (a políticos). O prejuízo não será só moral ou patrimonial aos compositores, mas um risco para democracia brasileira."

Mesma opinião tem o presidente da Ubem, Marcel Klemm, que alerta para o risco de uma perda de poder de decisão para os compositores: 

"Vejo com muita apreensão esse julgamento porque ele pode gerar um entendimento errado e abrir precedente para tirar do criador (compositor) a decisão de como a sua criação vai ser usada. Um precedente perigoso, pois quando uma obra é adaptada e utilizada para tirar alguma vantagem comercial ou política, isso é um uso que deve ser previamente autorizado pelo autor."

A preocupação com a perda de direitos também está presente no manifesto assinado por quase 400 compositores brasileiros. Num trecho do documento, eles argumentam: 

“Até hoje, nunca houve dúvida de que o uso de obras musicais com finalidades políticas, mesmo que modificadas letras e/ou melodias, sempre dependeu de autorização prévia do titular de direitos autorais. Ou seja, jamais cogitou-se enquadrar como paródia. Entretanto, esse entendimento histórico poderá ser modificado e admitir os usos indiscriminados das obras musicais com fins eleitorais, usurpando a gestão dos autores sobre suas criações. A paródia está prevista na lei de direitos autorais a fim de preservar a liberdade de expressão desde que não venha gerar prejuízo ou descrédito ao criador e sua obra. (...)

No caso de prevalecer o entendimento desfavorável aos criadores, haverá irreparável lesão aos direitos pessoais e às opções ideológicas em razão da interferência nos direitos inalienáveis dos autores, que terão suas criações artísticas - verdadeira extensão de suas identidades - atreladas a valores, opções, ideologias ou governos, eventualmente contrárias às suas convicções. Um verdadeiro risco à integridade do sistema de proteção aos direitos autorais”.

LEIA MAIS: O manifesto na íntegra

O julgamento envolve um colegiado de 10 ministros que compõem as duas turmas do STJ que julgam matérias relativas aos direitos autorais. Deles, cinco participaram do primeiro julgamento. "Mas isso não significa que repetirão o entendimento, pois é permitida a revisão, e, como eu disse, o cenário político é outro", afirma Sanches: "Está claro que houve uma interpretação equivocada da norma, que foi lida de forma estreita e sem avaliar os estragos causados para o direito autoral e para democracia. Hoje a luta é pelo direito autoral e por eleições limpas."

Fique ligado nos canais informativos da UBC para acompanhar os próximos desdobramentos do julgamento, assim que ele for retomado.

LEIA MAIS: Artigo: 'A sátira perdeu a graça'


 

 



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