A cantora e compositora deixa um legado de empoderamento do negro e da mulher
Do Rio
Foto de Rodolfo Magalhães
A música brasileira perdeu nesta quinta-feira (20) a voz única de Elza Soares. Associada da UBC, a cantora de 91 anos de vida — e mais de 70 de uma carreira sólida e prolífica, com mais de 80 discos lançados — morreu esta tarde em sua casa, no Rio, de causas naturais, segundo um comunicado enviado por sua equipe.
"É com muita tristeza e pesar que informamos o falecimento da cantora e compositora Elza Soares, aos 91 anos, às 15 horas e 45 minutos", começa a nota. "Ícone da música brasileira, considerada uma das maiores artistas do mundo, a cantora eleita como a Voz do Milênio teve uma vida apoteótica, intensa, que emocionou o mundo com sua voz, sua força e sua determinação (...) A amada e eterna Elza descansou, mas estará para sempre na história da música e em nossos corações e dos milhares fãs por todo mundo. Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim."
Dona de uma personalidade forte, marcante, Elza abraçou a causa dos excluídos: falou de racismo, da opressão à mulher, tornou-se musa do coletivo LGBTQIA+. E usou sua voz para transmitir essas mensagens em todos os gêneros: do samba ao pop, passando por jazz, rock e muitos outros.
Assumir as rédeas da sua carreira e do seu destino foi uma tarefa exitosa, mas não isenta de dor. Aos 13 anos, seu pai a casou com um homem décadas mais velho. Sofreu violência física e psicológica, além de abusos sexuais. Perdeu dois filhos dele e outro de Garrincha, o ponta-direita com quem manteve uma longa, apaixonada e tumultuosa relação de 17 anos, e que ela já descreveu como “o médico e o monstro ao mesmo tempo”, dada a conhecida alteração de comportamento do craque quando bebia. Curiosamente, Garrincha também morreu num 20 de janeiro, em 1983.
Em tantas décadas dedicadas à música, Elza viveu os altos e baixos da indústria fonográfica e tocou o fundo do poço profissional algumas vezes, sempre resgatada por amigos e admiradores que enxergavam nela uma força ancestral, um talento inato e a atitude guerreira de quem sempre se levanta após cair. Dois desses amigos sempre fez questão de citar nominalmente: “Caetano Veloso e Chico Buarque, eles são muito fortes na minha vida”, ela disse, há exatamente um ano, em entrevista exclusiva à Revista UBC. Ali, ela assumia que exaltar o empoderamento do negro e da mulher eram o legado que queria deixar.
"Se eu não lutar por essas coisas, que são minhas, que falam dos meus sacrifícios, das minhas perdas, quem vai lutar? Senti o racismo de todas as maneiras ao longo da minha vida. Fui julgada, tentaram me diminuir, mas não parei para pensar nisso, só fui em frente. Eu não saberia dizer o que seria a Elza Soares se fosse branca. Mas sei o que eu sou: gosto de ir à luta, detesto ficar sentada esperando, eu faço acontecer.”
Pelo Twitter, o amigo Caetano Veloso comentou a morte de Elza, "na glória a que fazia jus, numa idade respeitável, afirmando a grandeza possível do Brasil": "Foi uma concentração extraordinária de energia e talento no organismo da cultura brasileira." Ele relembrou ainda a história da composição "Língua", uma das voltas por cima da cantora ao longo da sua carreira:
"Tendo sido fã de sua voz e musicalidade desde os meus anos de ginásio, tive a honra de ser procurado por ela quando de sua iminente decisão de abandonar a carreira e/ou o Brasil. Fui capaz de convencê-la a ficar porque entendi que aquilo era uma espécie de pedido de socorro. Compus o samba-rap "Língua" e a convidei para cantar a parte melódica. Assim ela voltou a cantar e a receber atenção. Voltou à televisão e, depois, figuras tão díspares quanto Lobão e Zé Miguel Wisnik fizeram questão de trabalhar com ela."
Gilberto Gil também usou o Twitter para se despedir de maneira sucinta e sentida: "O Brasil sente sua partida, Elza Soares. Obrigado!" Também curto, mas emocionante, foi o relato de Mano Brown: "A voz do milênio. Vá em paz, Elza Soares." Marina Lima foi na mesma linha: "Boa viagem pelo universo inteiro. Aqui na terra você iluminou todos nós." E os Titãs também deixaram seu carinho à artista, a quem chamaram de amiga: "Muito tristes com a morte da querida Elza, amiga, grande artista e mulher notável, de enorme talento e força."
O rapper Fióti relembrou as parcerias com a estrela:
"Descansou a voz do milênio, a mulher do fim do mundo, uma das maiores artistas da história da música brasileira. Privilégio de ter trabalhado ao seu lado por algumas vezes, sempre carismática, sincera e entregue a arte. Eterna Elza Soares!"
Paulo Sérgio Valle, diretor-presidente da UBC, celebrou a longevidade que a artista terá através das suas canções:
"Elza Soares sempre foi e será uma grande artista. Uma das mais importantes do nosso país. Uma artista de tal magnitude não desaparece, podemos dizer que completa-se."
Diretor-executivo da UBC, Marcelo Castello Branco também destacou o enorme talento e o caráter único da estrela:
"Elza foi transformadora, do povo e do Olimpo. Foi disruptiva, de talento abusivo, incisivo, cortante. Andou na frente do seu tempo e fez seu próprio calendário de lendas e conquistas, que hoje são faróis de novos caminhos para muitas mulheres. Uma mulher admirável de um mundo novo."
Erasmo Carlos, que em 1972 compôs com Roberto Carlos a canção "Rainha de Roda", gravada por Elza para a trilha sonora da novela "O Bofe", da TV Globo, relembrou a experiência:
"Tive essa honra (de ser gravado por ela). Era das maiores cantoras que já ouvi."
A cantora e compositora Paula Lima, emocionada, também elogiou a diva:
"Elza Soares é histórica! Pra sempre! Legado, lição, excelência! Vida de mulher negra brasileira! Cheia de esperança e resiliência! A voz do milênio! Um grande amor, um orgulho!"
Ainda na edição da Revista UBC que a teve como capa, em fevereiro do ano passado, Elza recebeu uma bonita homenagem tanto de Chico como de Caetano, dois compositores aos quais ela atribuiu os principais momentos de retomada da sua carreira. Relembre abaixo os textos dos dois:
‘Nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza’
Por Chico Buarque, do Rio
Se acaso você chegasse a um bairro residencial de Roma e desse com uma pelada de meninos brasileiros no meio da rua, não teria dúvida: ali morava Elza Soares com Garrincha, mais uma penca de filhos e afilhados trazidos do Rio em 1969. Aplaudida de pé no Teatro Sistina, dias mais tarde Elza alugou um apartamento na cidade e foi ficando, ficando e ficando.
Se acaso você chegasse ao Teatro Record em 1968 e fosse apresentado a Elza Soares, ficaria mudo. E ficaria besta quando ela soltasse uma gargalhada e cantasse assim: “Elza desatinou, viu”.
Se acaso você chegasse a Londres em 1999 e visse Elza Soares entrar no Royal Albert Hall em cadeira de rodas, não acreditaria que ela pudesse subir ao palco. Subiu e sambou “de maillot apertadíssimo e semi-transparente”, nas palavras de um jornalista português.
Se acaso você chegasse ao Canecão em 2002 e visse Elza Soares cantar que a carne mais barata do mercado é a carne negra, ficaria arrepiado. Tanto quanto anos antes, ao ouvi-la em Língua com Caetano.
Se acaso você chegasse a uma estação de metrô em Paris e ouvisse alguém às suas costas cantar Elza desatinou, pensaria que estava sonhando. Mas era Elza Soares nos anos 80, apresentando seu jovem manager e os novos olhos cor de esmeralda.
Se acaso você chegasse a 1959 e ouvisse no rádio aquela voz cantando “Se acaso você chegasse”, saberia que nunca houve nem haverá no mundo uma mulher como Elza Soares.
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‘Uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu’
Por Caetano Veloso, do Rio
Elza Soares é uma das maiores maravilhas que o Brasil já produziu. Quando apareceu cantando no rádio, era um espanto de musicalidade. Logo ficaríamos sabendo que ela vinha de uma favela e desenvolvera seu estilo rico desde o âmago da pobreza.
Ela cresceu, brilhou, quis sumir, não deixei, ela voltou, seguiu e prova sempre, desde a gravação de "Se acaso você chegasse" até os discos produzidos em São Paulo por jovens atentos, que o Brasil não é mole não.
Celebrar os 90 anos e Elza é celebrar a energia luminosa que os tronchos monstros não conseguirão apagar da essência do Brasil.
LEIA MAIS: A reportagem completa sobre Elza da Revista UBC #47