Líderes das duas entidades analisam panorama do mercado em meio às novas incertezas e reafirmam confiança na recuperação
Por Alessandro Soler
Marcelo Castello Branco, diretor-executivo da UBC, e Isabel Amorim, superintendente do Ecad
Em pleno crescimento da nova onda de Covid-19, movida pela variante ômicron, a incerteza volta a golpear o mercado musical, um dos mais castigados pelas medidas de isolamento e restrição às reuniões de pessoas. Shows e festivais adiados, o carnaval de rua cancelado nas principais capitais e planejamentos de eventos em suspenso convivem com sinais esperançosos enviados por epidemiologistas: a relativa "brandura" atual do vírus poderia ser a antessala do fim da pandemia.
Em meio às expressivas quedas recentes na arrecadação com shows e usuários gerais (devido ao fechamento do comércio nos meses mais duros da pandemia), uma luz se acende: o digital, que já cresce ano a ano, viveu um salto de importância sem precedentes para a renda de quem faz música. Apesar disso, nem todos os titulares têm no streaming uma parte expressiva das suas receitas, o que torna essa solução para contornar o tombo em outros segmentos apenas parcial.
"O digital certamente tem sido um segmento de grande importância para compensar as perdas com shows e eventos. Em 2021, houve um aumento no consumo de streaming, com a chegada de novas plataformas de serviços. Fizemos novos acordos e renovamos contratos que garantiram os pagamentos de direitos de autor e conexos, o que resultou em uma distribuição de R$ 145,8 milhões no segmento de Serviços Digitais em 2021. Este foi o ano de maior distribuição de valores nesse segmento desde 2011", disse Isabel Amorim, superintendente do Ecad.
Com novos acordos com plataformas de streaming, um trabalho ativo de conscientização dos usuários de músicas para a necessidade de pagar pelo uso e os esforços das associações para melhorar seus processos, o total geral distribuído aos titulares em 2021 foi de R$ 905 milhões, queda de apenas 5% em relação aos R$ 947 milhões de 2020. Trata-se, claro, de um resultado bom, tendo em conta que a pandemia não deu trégua.
Mas uma análise com lupa mostra que certos setores foram mais prejudicados. O carnaval, por exemplo, foi o último grande evento de 2020 antes do confinamento. A arrecadação do segmento alcançou naquele ano R$ 15,8 milhões. Este ano havia uma perspectiva de retomada. Mas a ômicron freou os planos bruscamente, e a arrecadação até agora ronda algo como 10% da cifra de 2020. A suspensão dos blocos de rua em São Paulo, Rio, Salvador, Recife e outras grandes capitais da folia faz prever outro ano ruim para a arrecadação carnavalesca.
O cenário de incerteza obriga a uma constante adaptabilidade. É o que explicou Marcelo Castello Branco, diretor-executivo da UBC e presidente do Conselho de Administração da Cisac:
"Acredito que, independentemente de nossos orçamentos e metas, temos que seguir atentos às flutuações deste novo agora, quando as situações podem mudar muito rápido e exigem adaptações sincronizadas. O sistema de gestão coletiva teve mérito de, com muito trabalho do Ecad e de todas as sociedades e reuniões quase que semanais neste dois últimos anos, minimizar muito o efeito nocivo da pandemia. Foi acima de tudo um exercício de gestão, paciência e impaciência para não aceitar as coisas como são e mudar", descreveu.
Confira os principais trechos da entrevista dos dois ao site da UBC.
Já há sinais positivos para a gestão coletiva nos últimos meses? Shows, TV e outros segmentos vitais para a composição do bolo arrecadado dão mostras de recuperação?
ISABEL AMORIM: Observamos um movimento de retomada, sim, mas o surgimento de variantes da Covid-19 voltou a pausar alguns setores. Se olharmos a quantidade de shows e eventos de réveillon de 2019 e a compararmos com 2021, tivemos uma redução de quase 70%. Mesmo assim, o trabalho da gestão coletiva da música e o crescimento do streaming continuaram a amenizar o impacto da pandemia em 2021. As TVs abertas, de um modo geral, também tiveram um segundo semestre muito positivo, e isto se reflete no pagamento de direito autoral deste segmento que, junto com o digital, representou uma parcela importante do volume arrecadado. O último trimestre de 2021 apresentou um crescimento de mais de 35% nos valores distribuídos em comparação ao último trimestre de 2020, o que evidencia a retomada de diversos segmentos.
MARCELO CASTELLO BRANCO: Temos vários sinais positivos, dentro da prudência que estes novos tempos requerem. O digital cresceu muito e, de uma certa maneira, compensou as áreas mais vulneráveis de arrecadação. Acontece que 2 + 2 nem sempre são 4. Os titulares afetados nas áreas de show ao vivo e sonorização ambiental nem sempre têm seus repertórios representados na mesma medida no digital. Precisamos seguir na pressão, com empatia e sensibilidade. Buscar novas receitas e seguir flexíveis, mas assertivos na defesa de nossos direitos.
Que medidas foram, estão sendo ou podem vir a ser tomadas para contornar a queda na arrecadação em segmentos-chave como shows, usuários gerais e TV?
CASTELLO BRANCO: Tivemos um portfólio de soluções diversas, integradas e bem pensadas. Desde adiantamentos para titulares mais vulneráveis até, no caso da UBC, campanhas humanitárias com o Spotify, na qual distribuímos quase R$ 2 milhões a uma rede de titulares drasticamente afetados. Não existe uma solução mágica para um momento desta magnitude.
AMORIM: Desde o início da pandemia, foi grande o esforço para ampliar o diálogo com os usuários de música para reduzir a inadimplência e manter os pagamentos. Este diálogo foi essencial para a redução da queda na arrecadação. Fizemos diversas campanhas com segmentos do varejo, ajustamos a maneira de cobrança dos hotéis com base na ocupação real dos aposentos, mudamos a cobrança de rádios comunitárias e jornalísticas, fechamos acordos com associações de rádios, academias, hotéis. Isto nos aproximou do mercado, dos usuários. Também montamos uma equipe exclusiva para trabalhar o segmento digital. Este time vem atuando de maneira incansável nas longas e duras negociações com o segmento de streaming. Nos últimos anos, firmamos importantes acordos com plataformas como Globoplay, Gshow, TikTok, Disney + e Kwai, por exemplo. O pagamento dos direitos conexos no streaming foi uma importante vitória para os titulares, pois conseguimos contemplar mais pessoas. Pela primeira vez, foi possível incluir os intérpretes, músicos e produtores fonográficos entre os beneficiados na distribuição de streaming.
São quase dois anos desde que a arrecadação sofreu uma debacle em alguns segmentos. Já conhecemos o tamanho real desse tombo?
AMORIM: Estamos fechando os números finais de 2021. Podemos dizer que houve uma esperada recuperação e até crescimento significativo em alguns segmentos, reflexo da importância crescente do digital e o retorno do mercado no varejo, TVs abertas, rádios. Mas nossa previsão para a arrecadação de shows e eventos no segundo semestre não se concretizou. O resultado da arrecadação desse segmento em 2021 foi 75% menor que em 2019. Já a quantidade de shows e eventos realizados em 2021 sofreu uma redução de mais de 80% em relação a 2019, sem considerar as lives.
Crê que o sistema Ecad chega ao final de 2021 com suas sociedades mais unidas em torno a um objetivo comum do que no início da pandemia?
CASTELLO BRANCO: Não tenho dúvida. Trabalhamos muito juntos, como era imperativo. Temos um sistema engenhoso, pioneiro no mundo, de abarcar todos os direitos (autor, produtor, intérprete e músico executante), e isso nos faz mais fortes. Não à toa vem sendo estudado e, de certa maneira, replicado em regiões como a Ásia, além de países como Austrália e Inglaterra.
AMORIM: Estamos mais unidos, isto é certo. Ampliamos o diálogo entre nós, e nisto o modelo híbrido ajudou a gestão coletiva. Hoje nos reunimos online com muito mais frequência. Discutimos novas ideias, aceleramos propostas, compartilhamos ideias e realizamos projetos que melhoram a arrecadação, aprimoram a identificação de música e a distribuição dos valores arrecadados. Algo de positivo sai desta pandemia. Esta aproximação nos permitiu, por exemplo, fazer antecipações de valores distribuídos nos segmentos de Carnaval, Festa Junina e Movimento Tradicionalista Gaúcho, totalizando quase R$ 15 milhões. Ainda em 2020, logo no início da pandemia e muito rapidamente, a gestão coletiva aprovou também um adiantamento extraordinário de R$ 20 milhões, beneficiando cerca de 22 mil titulares. Fizemos um grande esforço para nos aproximarmos dos usuários na tentativa de realizar parcerias e diminuir a inadimplência, firmamos mais de 44 mil acordos, com usuários como a TV Bandeirantes, EBC e Rede TV, e também com CBN e Jovem Pan. Em 2020, foi feito um trabalho conjunto entre as associações de música e o Ecad que permitiu a liberação de R$ 170 milhões em créditos retidos, o que teve um impacto bastante positivo na distribuição total. Nos unimos também na defesa do direito autoral em diversos movimentos em Brasília, lutando pela garantia do reconhecimento do trabalho de compositores, músicos e demais titulares. Um exemplo emblemático foi a luta pela cobrança devida desses direitos, prevista em lei, pelas músicas tocadas nos quartos de hotéis em todo o Brasil.
Quais as perspectivas gerais para o mercado musical como um todo em 2022? Em que grandes movimentos deveremos prestar especial atenção?
AMORIM: Sairemos desta pandemia preparados para o crescimento que os próximos anos prometem. O mercado de direito autoral vem se movimentando e está aquecido em todo o mundo. A venda de catálogos de grandes nomes como Bob Dylan e David Bowie demostra que o crescimento vai acontecer, seja pelo streaming, pela volta dos eventos ao vivo ou por outras mudanças de consumo. Estamos unidos e preparados para este crescimento.
CASTELLO BRANCO: Acho que temos que estudar todos os movimentos. O do videogames, NFTs, blockchain e criptomoedas. E, principalmente, os efeitos da Inteligência Artificial. Tudo conversa com tudo e todos hoje, podendo ser de maneira remota ou disruptiva. Cada setor tem que escolher se prefere virar refém ou agente também destas mudanças. O mercado está febril, a percepção do valor futuro da música é superestimado nos próximos anos, e cada ano tem 365 oportunidades. As transferências de catalogos vão continuar, talvez ficarem mais lentas com a retomada dos show e outras receitas. Mas sinalizam tendências que não podemos desprezar ou ignorar.
A UBC encampou e deu grande visibilidade à campanha da Cisac de conscientização sobre o buy-out (venda total dos direitos futuros, muitas vezes imposta aos compositores de trilhas sonoras em negociações com produtores). Por quê? Qual o real perigo desse tipo de negociação para o compositor, sobretudo à luz do momento atual do mercado?
CASTELLO BRANCO: Em todas as instâncias somos pró-criadores e seus direitos. Todos têm o livre arbítrio na tomada de decisões, mas nosso papel e responsabilidade é de alertar para riscos de perda, não só de receita, mas de direitos muito protegidos e que sempre nortearam a UBC em seus quase 80 de existência. Existe muito oportunismo em algumas oportunidades — e, depois, arrependimentos. A questão do buyout é uma iniciativa global da Cisac que abraçamos convencidos de que a remuneração proporcional é o melhor e mais justo modelo de negócio para o criador, seus interesses e os de seus herdeiros. Temos muitos exemplos sobre como pode ser letal esta renúncia e como pode gerar perdas monumentais para os produtores de audiovisual. Somos a favor de modelos equilibrados, onde fique claro e bem definido o direito de todos.
Que outros grandes temas serão bandeiras da UBC em 2022?
CASTELLO BRANCO: Em 2022 comemoramos 80 anos da UBC. A primeira sociedade de direito autoral do Brasil, a mais internacional de todas. Mas não vamos falar do passado. Vamos seguir abraçando o futuro, comprometidos com o presente, o agora. Vamos reverenciar nossos pilares e os mais grandiosos personagens da nossa história, mas com um olhar na geração de talentos de hoje, do artista empreendedor, multifacetado, contemporâneo, futurista. Vamos seguir apostando na diversidade, na inclusão, na ética, numa nova ótica. Mais que tradição, somos inovação. Vamos ser mais “data driven" do que nunca, mas sem perder a ternura e a intuição.
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