Criação e produção com altíssima fidelidade – superior até à do CD – deve ganhar corpo, opinam produtores, após anúncio de transmissão sem perdas por serviços como a Apple Music
Por Isaque Criscuolo, de São Paulo
Numa época em que streamings de música não eram nem mesmo uma possibilidade, discos de vinil e CDs dominavam como meios de distribuição e consumo de música. Hoje relegados aos colecionadores ou profissionais da área musical, tais formatos oferecem uma alta qualidade de áudio que permite uma experiência mais fiel ao que é gravado em estúdio.
Oferecer essa mesma qualidade através do streaming é o objetivo de serviços como o Tidal, voltado para consumidores mais exigentes, os audiófilos. No entanto, plataformas como Apple Music e Amazon planejam levar esta experiência musical ao mercado mainstream.
Este mês, a empresa da maçã disponibilizou a qualidade de áudio lossless (sem perdas) aos assinantes sem custo adicional além do valor regular da assinatura. A título de comparação, no Tidal a assinatura do plano de alta fidelidade sonora chega a custar R$ 33,80 mensais no Brasil.
O mercado de streaming tem sido o grande motor da indústria fonográfica com receitas das versões premium das principais plataformas de áudio musicais crescendo 18,5% mundialmente e 28,3% no Brasil em 2020, de acordo com dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, na sigla em inglês). Globalmente, são 443 milhões de assinantes que pagam por seus serviços de streaming, e o streaming total (sejam assinaturas premium ou baseadas em anúncios) gerou à indústria US$ 13,4 bilhões, 62,1% de toda a música gravada em 2020. O movimento da Apple, portanto, é compreensível, pois, além de gerar um diferencial para seus consumidores, é uma resposta à concorrência no ramo dos streamings musicais.
Mas será que o consumo musical com qualidade técnica total afetará o processo de quem faz música?
Para Felipe Antunes, produtor musical e integrante da banda Vitrola Sintética, este é um momento interessante para a indústria, para quem produz música e para quem consome. Para ele, além de a experiência musical ser elevada, nasce um desafio para que quem produz faça tudo com ainda mais qualidade.
"Para nós, essa possibilidade é quase como uma reviravolta. Talvez a gente até passe a gravar com mais qualidade do que já gravamos, porque agora poderemos chegar dessa forma mais profunda ao consumidor. Normalmente, gravamos em qualidade de CD, mas existem novos territórios a explorar", diz.
Já o produtor musical Fábio Sá acredita que esta é uma oportunidade de levar mais detalhes e nuances a quem escuta música."Desta forma, as pessoas poderão ouvir todas as camadas de uma canção da mesma forma que nós, que produzimos, as ouvimos", diz.
Embora oferecer mais qualidade de áudio em serviços de streamings seja promissor, existe uma limitação técnica para os consumidores. Para ouvir o áudio com toda a fidelidade oferecida nos formatos lossless, é necessário um fone de ouvido com suporte a áudio em alta definição, assim como caixas de som mais potentes e preparadas para uma reprodução mais complexa.
Fones de ouvido que acompanham celulares, ou fones bluetooth, por exemplo, não contemplam o formato de alta fidelidade. Inclusive, os próprios fones da Apple, os Airpods, não são capazes de reproduzir em alta qualidade devido às limitações do bluetooth.
Uma forma que a Apple encontrou para driblar essa limitação é oferecer o recurso de áudio espacial, que proporciona uma experiência inovadora de imersão através de tecnologias como Dolby Atmos. Neste formato, o ouvinte tem a sensação de que o som é transmitido de várias direções, não somente estéreo.
"Quando masterizamos e finalizamos uma música, já consideramos os diferentes equipamentos e caixas, desde as mais simples até aquelas com maior definição. Para nós não muda muita coisa, pois já pensamos na experiência musical das pessoas durante a gravação", diz Felipe Antunes.
Recentemente, Felipe Antunes e Fábio Sá trabalharam em conjunto no álbum “Medeia”, uma trilha sonora criada para o teatrofilme “Medeia por Consuelo de Castro”, lançado em abril e disponível na plataforma de streaming do cine Belas Artes, de São Paulo.
“A experiência do álbum difere da que se tem no filme. Esse disco, 'Medeia', é a tentativa de traduzir sons ‘internos’ na busca da natureza das emoções líquidas do corpo humano. É o encontro do mar e do fogo, do Oriente e do Ocidente, e o ímpeto revolucionário de seguir carregando marcas, dores e alegrias pela eternidade em busca de equilíbrio e igualdade.”, define Felipe.
A experiência do álbum, baseada em ruídos, temas em baixo acústico, sons de máquinas e equipamentos processados e bateria, é um exemplo do que pode ser levado ao público final de forma ainda mais intensa através da qualidade de áudio elevada. Assim, será possível criar experiências cada vez mais detalhadas, sensoriais e intimistas.
De acordo com o Spotify, músicas em qualidade lossless têm sido uma grande demanda do público, que busca por novas experiências com as músicas e artistas que já consomem diariamente.
Além de Apple e Spotify, o Amazon Music também oferecerá lossless em sua plataforma, acirrando uma competição de mercado entre players como Deezer e Tidal. É uma disputa que tende a favorecer o consumidor com novas formas de ouvir música, além de beneficiar o mercado musical ao potencialmente elevar a criação e a fruição de músicas a um nível ainda não conhecido.