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João Gilberto, 90 anos: o intérprete que compôs todo um gênero
Publicado em 10/06/2021

Cantor, instrumentista e compositor baiano, com seu jeito único de cantar e tocar violão que se tornou a marca principal da bossa nova, foi destaque na prolífica escola brasileira de intérpretes que influenciaram decisivamente os estilos que representaram

Por Kamille Viola, do Rio

Quando João Gilberto lançou, em julho de 1958, o disco em 78 rotações que trazia “Bim Bom”, dele próprio, e “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, a bossa como tal ainda não existia – para muitos, foi criada justamente ali.

O lado B do compacto também dá nome ao primeiro LP, de 1959, produzido por Aloysio de Oliveira. O impacto à época foi grande, tendo marcado as trajetórias de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben (hoje Ben Jor), Gal Costa, Chico Buarque e Roberto Carlos, além da segunda geração da bossa nova, entre muitos outros nomes. E segue reverberando, neste 10 de junho de 2021, quando João comemoria 90 anos de vida, e além.

“João Gilberto foi o maior artista com que minha alma entrou em contato. Antes de completar 18 anos, aprendi com ele tudo sobre o que eu já conhecia e como conhecer tudo o que estivesse por surgir. Com sua voz e seu violão, ele refez a função da fala e a história do instrumento. Pôs em perspectiva todos os livros que eu já tinha lido, todos os poemas, todos os quadros, todos os filmes que eu já tinha visto. Não apenas todas as canções que ouvi. E foi com essa lente, esse filtro, esse sistema sonoro que eu passei a ler, ver e ouvir”, escreveu Caetano em suas redes quando o artista morreu, em 2019.

O artista inovou na gravação de “Chega de Saudade” ao pedir dois microfones, um para a voz e outro para o violão, o que causou choque nos produtores do disco. Até então, gravava-se com apenas um microfone, com destaque para a voz. Com o baiano, voz e violão têm o mesmo volume. A fusão entre voz e instrumento se tornou símbolo e síntese da bossa nova.

No livro “Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto” (1999), Walter Garcia explica que João GIlberto sintetiza em voz e violão toda a linhagem anterior do samba “jazzificado” dos anos 1930, do samba-canção abolerado da década de 1940 e do samba-canção moderno da década de 1950. Na junção de voz e no violão do artista, como descreve ele, estão o canto de Orlando Silva e a harmonização de Radamés Gnatalli, o tamborim das escolas de de samba, o piano jazzístico de Johnny Alf e João Donato, a marcação de baixo (o elemento musical, não o instrumento) que já era ouvida no samba-canção. O autor ainda aponta a relação da bossa nova com Noel Rosa e as origens da síncope na música brasileira.

O cantor, nascido em Juazeiro, na Bahia, começou a cantar na cidade. Em busca de sucesso na carreira artística, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1949, com o grupo Garotos da Lua, do qual acabou sendo expulso. Chegou a lançar um compacto solo em 1952 que ainda remetia a cantores como seu ídolo Orlando Silva, com as faixas “Quando Ela Sai” (de Alberto Jesus e Roberto Penteado) e “Meia Luz” (Hianto de Almeida e João Luis). Nada aconteceu. Aos poucos, no entanto, foi se aproximando da movimentação que acontecia no Beco das Garrafas, com interesse pelos músicos Johnny Alf, considerado por muitos um dos precursores da bossa nova, João Donato e do violonista Luiz Bonfá, influências para o estilo que ele viria a desenvolver.

Em 1955, saiu da então capital federal e passou uns tempos em Porto Alegre e Diamantina (MG). Quando retornou, em 1957, estava muito mudado. “Um dia, João Gilberto deixou o Rio para viver um misterioso exílio pelo Brasil. Cantava à maneira de Orlando Silva e voltou com outra voz, outro timbre, outro estilo”, escreveu o jornalista e crítico musical João Máximo à ocasião da morte do artista.

Em seguida, João Gilberto lançou “O amor, o sorriso e a flor” (1960) e “João Gilberto” (1961). Em 1962, foi um dos destaques de show patrocinado pelo governo brasileiro no Carnegie Hall, um dos principais palcos de Nova York, em uma tentativa de popularizar o gênero nos Estados Unidos. O show foi marcado por problemas técnicos, mas a passagem por Nova York acabou rendendo bons frutos para alguns dos artistas, inclusive João Gilberto, que em 1964 lançou o álbum “Getz/Gilberto” ao lado do saxofonista de jazz americano Stan Getz. O trabalho se tornou um dos grandes clássicos da carreira do brasileiro, tendo vendido dois milhões de cópias e conquistado quatro estatuetas do Grammy.

Saiu em turnê pela Europa e fez shows pelos Estados Unidos e pelo México, países onde morou. Outro trabalho de destaque em sua carreira é o álbum “Amoroso” (1977), que marca seu encontro com o maestro alemão Claus Ogerman, que fez os arranjos do disco. Nele, gravou a canção “Estate”, do italiano Bruno Martino, que, após o registro de João Gilberto, tornou-se um standard da música mundial, sendo regravado por diversos artistas, como Chet Baker e Toots Thielemans, entre outros.

Voltou definitivamente ao Brasil apenas em 1979. A partir de então, lançou apenas três álbuns de estúdio: “Brasil” (1981), “João” (1991) e “João Voz e Violão” (2000). Sua primeira turnê no Japão, em 2003, causou uma explosão da bossa nova naquele país e rendeu um disco, “João Gilberto in Tokyo” (2004).

Com o passar do tempo, sua fama de perfeccionista e excêntrico foi se espalhando. Nos últimos anos de vida, ficou recluso em seu apartamento no Leblon, na Zona Sul do Rio. Fazia raras aparições públicas. João deixou três filhos: João Marcelo (do casamento com a também cantora Astrud Gilberto),Bebel Gilberto (dele com a cantora Miúcha, morta meses antes de João), e Luisa (com a produtora Claudia Faissol).

Fizeram escola

Cada um à sua maneira, outros artistas da música brasileira que eram sobretudo intérpretes marcaram época e fizeram escola, influenciando gerações e o próprio gênero musical em que militaram. É o caso, por exemplo, de Francisco Alves, o Rei da Voz, considerado decisivo na construção de vários gêneros populares.

Embora reproduzisse o estilo “operístico” de cantores populares da época, influenciado por seu ídolo Vicente Celestino e com preferência por estilos românticos, como seresta, modinha e valsa, ele colaborou para compor elementos formadores do samba urbano e outros gêneros modernos, além de torná-los mais adequados aos meios de comunicação eletrônicos.

Conseguiu adaptar seu canto a músicas de Sinhô, como “A Favela Vai Abaixo” (1928); de Noel Rosa, como “Felicidade” (1932), “Feitio de Oração” e “Não Tem Tradução” (1933); e de Ismael Silva, “Ando Cismado” (1933), “Tristezas Não Pagam Dívidas” (1932) e “Não Digas” (1933), inaugurando com eles uma outra forma de cantar o samba urbano. Como intérprete, transitou por diversos estilos musicais. Lançou impressionantes 1.173 fonogramas de registros mecânicos e elétricos, entre 1920 e 1952.

Um dos primeiros ídolos de massa da nossa música, Orlando Silva não à toa ganhou o epíteto de Cantor das Multidões. Considerado por muitos a mais bela voz do país, foi o maior vendedor de discos do Brasil entre 1937 e 1942, e passou a ter o cachê mais alto entre os artistas da época. Era um dos ídolos e inspirações de João Gilberto, que chegou a se sentir frustrado por não alcançar os resultados do vozeirão de Orlando Silva antes de adotar o estilo que o consagraria.

Depois de uma vida turbulenta, marcada pelo vício em álcool e morfina, chegou a se reerguer na carreira, até cair no ostracismo com a ascensão de outros estilos musicais na década de 1970. Nascido em 3 de outubro de 1915, Orlando Silva morreu no dia 7 de agosto de 1978, aos 62 anos, vítima de um acidente vascular cerebral.

Se a bossa nova e João Gilberto haviam acabado com o domínio do dó de peito, das vozes volumosas, com Elis Regina esse tipo de canto voltaria a ter espaço e prestígio. “A expressão ‘dó de peito’ faz referência à habilidade do cantor em, por meio da técnica, chegar a uma nota considerada aguda para a tessitura vocal humana a partir do registro de peito, que geralmente se limita à região grave e média. É utilizada, portanto, para referir-se aos cantores de vozes fortes, potentes, que divergem da delicadeza do canto propagado pela bossa nova”, explica Bruna Queiroz Prado em “Para gritar o céu: O canto como desobediência feminina à cultura dos homens” (2019), sua tese de doutorado em música, defendida na Unicamp. Para alguns, ao resgatar o canto rasgado, Elis teria contribuído para apressar o declínio da bossa nova.

Já Maria Bethânia, desde o trabalho que a projetou — o show “Opinião”, de 1965, no qual a cantora nascida em Santo Amaro da Purificação (BA) substituiu Nara Leão — mostrou que o teatro e a música se encontravam em seu trabalho. Ainda de acordo com Bruna Queiroz, diferentemente de Nara, Bethânia usa voz de peito e demarca a diferença entre uma estrofe e outra, alternando-se entre um andamento mais livre e com ênfase na melodia (com prolongamentos vocálicos) e outro com ritmo preciso e marcado, utilizando-se também de dinâmica.

“Seguindo a lógica textual e dramática, ela cria uma narrativa musical, onde há introdução, meio e clímax. Embora ela explore este lado musical do texto, em nenhum momento deixa a palavra em segundo plano, sendo o texto quase falado (e gritado). Assim, a cantora incorpora o projeto estético de João Gilberto, de quem era grande admiradora, mas dá a ele um incremento ao incluir o grito, o som de uma respiração ofegante e o prolongamento vocálico em momentos de maior dramatização do texto”, descreve Prado.


 

 



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