Em meio à queda generalizada na renda dos titulares de direitos, gigante sueca faz própria pesquisa para medir viabilidade do modelo 'user-centric'; entidade que representa músicos nos EUA pede aumento na taxa paga por stream, fixa há anos
Por Lúcia Mota, de San Francisco (EUA)
Em meio à mais forte crise no segmento dos shows musicais ao vivo em décadas, com receitas que virtualmente evaporaram, os olhos e a atenção do mercado se voltam, com razão, para o streaming. Como corroboraram os dados do recém-divulgado relatório global da IFPI, foram as grandes plataformas (Spotify, Apple Music, YouTube, Deezer, Amazon, TIDAL e outras) que lideraram o crescimento forte da indústria fonográfica em 2020, com um salto de 18,5% nas suas receitas (no Brasil, 28,3%) e uma fatia de enorme peso: US$ 13,4 bilhões, ou 62,1% de tudo o que a música gravada gerou. Só o Spotify alcançou, em janeiro, um valor recorde de mercado: US$ 67 bilhões, três vezes mais do que valia em março, quando o mundo se trancou em casa — e passou a ouvir mais música pelas plataformas do que nunca.
O mesmo não se pode dizer da renda dos criadores musicais.
Ainda sem dados definitivos sobre as presumíveis quedas na arrecadação de direitos autorais, já se sabe que não aumentaram os percentuais de pagamento das grandes plataformas aos titulares das canções. Dados divulgados há alguns dias pela Union of Musicians and Allied Workers (UMAW), uma entidade dos Estados Unidos que advoga pelos direitos de músicos, compositores e outros atores com menor poder na cadeia de produção musical, mostram que o valor por stream se mantém mais ou menos fixo há anos: US$ 0,0038 por audição, o que significa que são necessários mil streams para que se gerem US$ 3,8 em royalties, que depois serão distribuídos entre todos os titulares, com as gravadoras/editoras com a maior fatia.
Ainda segundo a UMAW, para que um criador musical conseguisse ter uma renda equivalente a US$ 15 dólares por hora, salário mínimo médio na Califórnia, teria que alcançar nada menos do que 657.895 ouvintes mensais no Spotify, um feito mais de 30% maior do que o obtido, por exemplo, pelo BaianaSystem no Brasil.
O clamor por uma melhor distribuição, sempre presente desde que o streaming se tornou a tábua de salvação do mercado musical, se tornou um imperativo imediato: é preciso pagar melhor a quem cria as canções que fazem a indústria existir.
E há indícios de que grandes plataformas estão se movendo. Uma fonte da UBC no Spotify afirma que há um estudo avançado dentro da maior companhia de streaming exclusivamente musical sobre possíveis maneiras de melhorar o pagamento aos compositores, intérpretes e outros membros minoritários. Atualmente, não há um consenso sobre quanto do valor permanece com os grandes players (majors/editoras), mas fontes estimam que 80% do lucro das grandes gravadoras, hoje em dia, vêm dos royalties pagos exclusivamente pelo Spotify.
Além de uma nova equação, que melhore os pagamentos a quem compõe e interpreta, a gigante sueca debate a viabilidade da adoção de uma fórmula proposta pela francesa Deezer e ainda não encampada por nenhuma das concorrentes: a chamada lógica user-centric, que altera significativamente o cálculo de pagamento, deslocando a conta do atual rateio da totalidade das audições para centrar-se no que ouve cada usuário.
Hoje em dia, tudo que toca nas plataformas num determinado mercado, mensalmente, é contabilizado. O valor gerado em assinaturas e anúncios é somado, o percentual das majors/editoras é descontado, e o restante é dividido pelos titulares proporcionalmente, segundo o número de streams alcançado. No método user-centric, há alguns anos inviável mas, em tempos de big data e sistemas capazes de calcular gigantescas quantidades de informação, totalmente possível, a audição de cada um dos mais de 400 milhões de assinantes do streaming pago seria analisada.
Se um determinado usuário passou o mês inteiro ouvindo uma só música, esse artista receberia — descontados, novamente, os percentuais das majors/editoras e de outros atores — a grana correspondente da assinatura. Ou seja, já não se distribuiria o dinheiro proporcionalmente ao conjunto da plataforma, mas individualmente, com base no que cada usuário ouviu. O método, apesar de parecer ser mais justo, também tem seus detratores, que vêm uma potencial concentração maior dos ganhos nas mãos dos artistas que puderem promover melhor seus catálogos e, assim, seduzir mais ouvintes. Outros argumentam o contrário: que artistas pequenos, mas com um público fiel, terão mais chances de aumentar seus ganhos, atualmente diluídos por seu baixo número de streams mensais.
Manifestantes na porta do Spotify em San Francisco. Foto: reprodução Nastia Voynovskaya/KQED
Uma pesquisa da empresa Deloitte publicada em fevereiro sustenta que uma mudança do modelo de rateio para o user-centric não traria grandes mudanças em si mesma. O estudo do Spotify — cujas posições sobre o tema são ambíguas, com reiteradas declarações dos seus porta-vozes em diferentes países afirmando que "a decisão sobre o melhor modelo está nas mãos dos artistas"— seria uma tentativa de corroborar ou não essa tese.
Qualquer que seja o modelo, porém, é consenso no mercado que a chave para melhorar os ganhos dos criadores estaria no aumento do pagamento por stream. "Hey, Daniel Ek, onde está meu cheque?", podia-se ler, em meados de março, em cartazes que manifestantes seguravam na porta do escritório americano do Spotify, em San Francisco, referindo-se ao sueco fundador da empresa. Mais protestos como esse estão programados para os próximos dias, diante de outras sedes regionais da empresa, inclusive no Brasil. Enquanto o Spotify não divulga os resultados do seu aparentemente ambicioso projeto de aumentar os ganhos dos autores, estes parecem cada vez menos dispostos a esperar em silêncio.