Esta semana, ações do gigante sueco do streaming alcançaram maior preço histórico, reavivando questionamentos sobre baixa remuneração aos criadores das músicas que geram as receitas do streaming
Por Ricardo Silva, de São Paulo
Fachada da Bolsa de Nova York, em abril de 2018, pouco antes da oferta pública inicial de ações do Spotify. Christopher Penler/Shutterstock.com
As ações do Spotify alcançaram, no início desta semana, a maior cotação na Bolsa de Nova York desde que a empresa fez sua OPA (oferta pública de ações) há quase dois anos. A US$ 353,11 por unidade, conferiram à companhia um valor de mercado de coisa de US$ 67 bilhões, três vezes mais do que valia em março, no início do confinamento, o que dá uma ideia do poderio do gigante sueco num mundo de consumo musical irreversivelmente digital e – por conta da pandemia – aceleradamente doméstico. A notícia, claro, levantou sobrancelhas por aí, sobretudo entre os pregam uma distribuição mais justa dos valores gerados pelo streaming. Estaria na hora de o Spotify e outros players importantes da indústria darem passos mais efetivos para melhorar a remuneração dos titulares de direitos autorais?
O advogado americano Chris Castle, especialista em mercado musical, não tem dúvida de que sim. Num texto enviado à UBC, ele lembra que, depois de muitos trimestres de perdas, a companhia encadeou ganhos de quase US$ 6 bilhões em três trimestres consecutivos até setembro do ano passado, com pouco menos de US$ 2 bilhões em lucro puro. A notícia é ótima. Mas, como provoca o analista, será que também para os criadores? “Companhias como o Spotify não entram no mercado para gerir perdas, entram para gerar lucro. Seu propósito essencial é extrair os máximos ganhos possíveis depois de uma OPA e distribuí-los à menor quantidade possível de pessoas.”
Castle prega uma mudança completa na lógica da repartição dos lucros, já que ele vê uma clara desvalorização do ativo principal do Spotify e de outras companhias de streaming musical: a música. Sabe-se que há muito as principais plataformas vêm defendendo, com maior ou menos clareza, a necessidade de fazer o bolo crescer para, então, reparti-lo. O advogado sugere duas fórmulas para isso imediatamente, aproveitando a excelente maré da companhia sueca:
“A primeira, e mais óbvia, é melhorar a participação dos autores, intérpretes, produtores fonográficos e outros titulares nos percentuais das distribuições, com menor retenção dos ganhos para a própria plataforma ou para destinar a outros players. A segunda é fazer como certamente farão com seus acionistas: distribuir um bônus aos artistas”, afirma o advogado, que diz expressar a mesma visão de “um número cada vez maior” de pessoas e instituições que pedem melhores remunerações – vozes que, como em repetidas ocasiões mostramos nos nossos canais informativos, incluem, entre outras, a do ex-presidente da Cisac, Jean-Michel Jarre.
O mecanismo seria bem claro, segundo Castle: um pagamento extra, na forma de um “obrigado” aos criadores, que são quem, com suas músicas, vem gerando o agora lucrativo balanço da empresa. “O Spotify deveria fazer isso. Ou mesmo Daniel Ek (cofundador da empresa) pessoalmente: distribuam esse lucro entre os que o merecem”, prega.
A maré alta do Spotify e, presumivelmente, de outras plataformas deve ter vida longa. Pesquisas em vários países, entre eles o Brasil, detectaram crescimentos recordes de consumo musical através de grandes plataformas de streaming durante a pandemia – o que apenas antecipou uma tendência que, não fosse pelo confinamento, também viria, mas talvez mais lentamente.
Um amplo estudo da paulistana consultoria Box 1824, em parceria com o canal Multishow, encontrou mudanças rápidas no consumo musical desde o início do isolamento social que parecem irreversíveis. “A indústria fonográfica passou a ter grandes receitas com shows quando aconteceu o colapso dos discos nos anos 2000. A pandemia impacta tanto o artista grande quanto o menor. O que a gente pode afirmar é que vai haver uma pulverização da receita, vai se quebrar. Para o show acontecer de forma normal, vai demorar muito. Quando tudo reabrir, o artista já vai ter descoberto novas formas de receitas”, descreveu Henrique Díaz, diretor de tendências e futuro da agência, que viu um notável fortalecimento do streaming.
Cada vez mais multitarefa e teletrabalhando como nunca, as pessoas passaram a ouvir música quase todo o tempo, ainda mais em tempos em que desestressar-se, relaxar e conectar-se com os demais através de pontos em comum (e nada como a música para isso) parecem ter se tornado uma necessidade vital. Numa lógica típica das redes sociais, a sociedade tende também a fechar-se mais em bolhas, algo claramente captado no estudo da Box 1824/Multishow. Isso talvez explique, por exemplo, o grande crescimento do consumo de gospel no streaming no Brasil, um movimento detectado no Spotify e na Deezer, por exemplo, com altas de mais de 20% nas reproduções das playlists e de artistas do gênero. Já no Google, as buscas por cantores, cantoras e bandas do gênero aumentaram 200% desde o início da pandemia, segundo dados do maior buscador do mundo.
“O crescimento (do gospel) foi totalmente orgânico”, disse Roberta Pate, diretora de Relacionamento entre Artistas e Gravadoras do Spotify na América Latina, em outubro, segundo o site Mundo do Marketing. “O gênero cresceu também no mercado internacional, e é interessante observar que no Brasil se ouve gospel nacional e estrangeiro”, afirmou a executiva, lembrando que o país é o segundo maior consumidor mundial de música cristã, atrás apenas dos Estados Unidos.
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