Classe artística, liderada pela cantora e compositora Anitta — que debateu com Felipe Carreras (PSB-PE) ao vivo (foto) —, consegue vitória parcial, mas parlamentar mantém intenção de interferir na gestão coletiva de direitos autorais
Do Rio
Após muita pressão da classe artística e de players do mercado musical, o deputado Felipe Carreras (PSB-PE) voltou atrás e anunciou que pedirá ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para retirar a emenda ao texto da MP 948/20. Iniciativa do parlamentar pernambucano, o documento trazia uma série de regras sobre gestão coletiva de direitos autorais e isentava produtores de eventos do pagamento de execução pública. A MP 948 trata de regras de cancelamento de reservas turísticas e eventos durante a epidemia de Covid-19, temas bastante distantes da proposta inserida por Carreras.
De acordo com a falida emenda, sociedades em dívida com a União no Cadin (Cadastro Informativo dos Créditos Não Quitados) não poderiam mais cobrar direitos autorais. Além disso, o Ecad seria proibido de usar o critério de percentual sobre bilheteria para calcular o valor devido pelos produtores de eventos e shows. E mais: ao livrar os produtores de qualquer pagamento de execução pública, o texto transferia a conta aos intérpretes das canções executadas. O deputado previu até mesmo como isso seria: através de uma retenção de 5% do cachê do intérprete.
"O artista tem o direito constitucional de decidir como a obra dele vai ser usada, como vai cobrar por ela. Você (Carreras) não está do nosso lado."
Anitta
Num vídeo que circula pelas redes sociais, intitulado “Carta Aberta Aos Artistas”, o “jabuti” — termo usado no contexto do Congresso para designar inclusões de interesses pessoais em projetos de lei — é explicado em detalhes. Felipe Carreras é sócio da Festa Cheia Produções e Propaganda Ltda., uma grande produtora de eventos em Pernambuco, e, no site da Abrape, aparece em diversas referências como um representante da entidade, interessada em “terceirizar” os custos com direitos autorais. Caso o “jabuti” passasse, os donos da maior parte do lucro com a realização de eventos, os produtores, simplesmente não teriam que tocar no próprio bolso para pagar ao Ecad.
Além de uma série de manifestações de repúdio por parte de artistas como Alceu Valença, Jota Quest, Fernanda Abreu e Teresa Cristina em redes sociais, a cantora e compositora Anitta entrou com força na discussão. Num vídeo transmitido por sua conta no Instagram na noite de terça, com 1,6 milhões de visualizações, ela debateu com Carreras ao vivo. A estrela pediu a exclusão da emenda, explicou detalhes sobre o sistema de gestão coletiva de direitos autorais e sugeriu ser “má-fé” a inclusão de todo um pacote alheio à epidemia no texto da MP 948. Para ela, a pressa na votação de medidas emergenciais poderia induzir os deputados e senadores a aprovarem mudanças que prejudicam os titulares de direitos autorais.
Outro momento da live de Anitta e Carreras
“Se a gente fosse votar amanhã ou depois, concordo (que seria má-fé). Mas temos 120 dias para votar, até o final de julho. Foi um compromisso pactuado para retirar o tema da MP 907”, alegou Carreras. “Eu posso fazer uma autocrítica e reconhecer que a emenda pode dar uma leitura dúbia”, completou.
A resposta de Anitta foi incisiva: “A exclusão de um tema indevido (da MP 907) não implica a inclusão automática numa MP que, originalmente, não tinha nada a ver com esse tema. Vocês estão ferindo a Constituição: o artista tem o direito constitucional de decidir como a obra dele vai ser usada, como vai cobrar por ela. Seus direitos autorais estão protegidos pela lei. Essa inclusão é de um oportunismo sem limites.”
Ante a tentativa do deputado de sustentar que defende os interesses dos titulares ao propor uma “distribuição de lucros e prejuízos” no caso dos eventos e shows, tirando do âmbito da receita bruta o critério de cobrança da execução pública, a cantora devolveu: “Você não está do nosso lado”.
VEJA MAIS: O vídeo do debate de Anitta com Felipe Carreras na íntegra
Num texto publicado numa rede social na noite de quarta-feira (6), Carreras disse que continuará a lutar por "transparência no Ecad". Ele se mostra contrário às regras de cobrança da entidade e questiona os valores. Cabe lembrar que, como diz a lei, a gestão coletiva de direitos autorais musicais é uma atividade de caráter privado, uma vez que versa sobre obras criadas por pessoas, que têm o direito constitucional de estabelecer o preço para o seu uso, não sendo legais interferências nesse processo.
O deputado pernambucano é representante da Abrape, uma entidade que representa 126 empresas promotoras de eventos, das quais 44 estão inadimplentes, totalizando uma dívida de mais de R$ 12 milhões. O número de integrantes da entidade representa apenas 5% do total arrecadado com direitos autorais em shows. No site da instituição, há uma frase dele em destaque: “Sou produtor, estou deputado. (...) Eu sou vocês no Congresso.”
O atual presidente da associação, Doreni Caramoni Júnior, é proprietário de três empresas de produção de eventos que, ao todo, devem R$ 2 milhões em direitos de execução pública não pagos. Em 2017, ele chegou a um acordo com o Ecad, mas não o cumpriu. Ao todo, o empresário promoveu 170 shows sem pagar nada aos titulares das canções tocadas.
Há muito tempo o Ecad tenta, através de acordos, resolver o problema de inadimplência das empresas filiadas à Abrape. No final do ano passado, tentou-se realizar um convênio com benefícios para os filiados, desde que houvesse o compromisso do pagamento. O Ecad nunca recebeu resposta sobre a proposta, até o último dia 30 de abril, quando o retorno da Abrape foi uma simples negativa.
Enquanto isso, a movimentação do lobby da associação no Congresso foi intensa. A Abrape foi a artífice, através de Felipe Carreras, da tentativa de inclusão da exclusão da cobrança a produtores de eventos — e da alteração das regras de gestão coletiva — no contexto da MP 907. Com a forte reação da classe artística e a perda de clima político para seguir em frente, o lobby decidiu transferir o pacote de isenções para a MP 948.
Agora, com iniciativas como a live de Anitta, e com apoio de mais nomes, como Diogo Nogueira, Pablo Bispo, Lexa, Maria Gadú, Paula Lima e Ana Vilela, entre muitos outros que já vêm se manifestando, a classe artística e as sociedades que representam milhares de titulares de direitos autorais musicais prometem manter a mobilização e deixar claro que não aceitarão o “jabuti” desenhado para atender especificamente aos interesses da associação à qual pertence o deputado Felipe Carreras.
"O mercado da música é um organismo mais vivo do que nunca, e o Ecad segue esta dinâmica, de portas e janelas abertas. Seus critérios e regras de arrecadação e distribuição não são imutáveis. Todos, absolutamente todos os titulares sabem de onde vem e para onde vai o seu dinheiro. Os sites, portais e aplicativos do Ecad e de sociedades como a UBC deixam isso claro, e com total rastreabilidade do direito de cada um. A gestão coletiva brasileira é uma das dez mais potentes do mundo e não aceita improvisos oportunistas como a inclusão de temas de natureza autoral numa emenda despropositada dentro de uma MP de caráter emergencial por temas da Covid-19", disse Marcelo Castello Branco, diretor-executivo da UBC. "Este não é o momento nem o fórum para uma discussão dessas. Representamos cerca de 380 mil autores, intérpretes, músicos e produtores. Somos a favor de uma agenda positiva, construtiva e, acima de tudo, honesta. Obrigado à Anitta por seu engajamento e pelo espaço para discutir um tema tão vital."
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