Crise de proporções inéditas para o segmento de shows ao vivo obriga artistas e agentes do mercado musical a pensarem em soluções de curto prazo
Por Alexandre Matias, de São Paulo
Colaboração de Alessandro Soler, de Madri
Com o avanço da epidemia do coronavírus — e os consequentes cancelamento de eventos e fechamento de locais públicos —, o mercado da música ao vivo sofreu um dos golpes mais duros de sua história. As primeiras notícias de suspensões e adiamentos vinham de eventos em datas próximas ou realizados para grandes públicos, mas logo teatros, salas de cinemas e casas noturnas se viram potenciais zonas de proliferação da doença e fecharam as portas voluntariamente. Até que, por fim, determinações municipais e estaduais país (e mundo) afora tornaram a medida compulsória.
Em vez de levar as mãos à cabeça, em desespero, a classe artística preferiu pensar criativamente. O mercado de streaming de shows deu um salto, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, mas não só: cada vez mais artistas e produtores brasileiros têm tentado driblar esta crise chamando o público para assistir a apresentações ao vivo online. Zélia Duncan e Fernanda Abreu foram das primeiras por aqui. Fernanda tinha planejado gravar um DVD ao vivo e assim o fez, com a plateia da casa de shows Imperator vazia, enquanto Zélia transmitiu o show que fazia no Teatro Rival para os fãs. Os dois eventos aconteceram na última sexta-feira.
Num efeito positivo e coletivo, mais artistas se apressaram a entrar na onda para virar esse jogo. Nomes como Teresa Cristina, Felipe Cordeiro, Roberta Sá e Rhaissa Bittar, entre muitíssimos outros, aderem à onda dos shows transmitidos por streaming. Mas não só. Moraes Moreira, por exemplo, publicou poemas de cordel. Caetano Veloso, reflexões. “As pessoas não entenderam claramente que é preciso tomar uma atitude de quarentena. Não é para a gente ver bares cheios, praias cheias. É para haver recolhimento”, disse Caetano através de uma rede social.
O jornal "O Globo" também fará um festival. Será de sexta-feira (20) a domingo (23), com uma enxurrada de associados da UBC entre as 20 atrações, como Adriana Calcanhotto, Hamilton de Holanda, Duda Beat, Jards Macalé, Margareth Menezes, Dona Onete, Pedro Luis e muitos outros. O festival #tamojunto será transmitido pelo site do jornal e por suas redes sociais.
Outros eventos do gênero são o FicoemCasaBR, com Maria Gadú, Francisco El Hombre, Boogarins e Canto Cego, entre muitíssimos outros; e o #FestivalMusicaEmCasa. Este último, de 20 a 29 de março, terá atrações variadíssimas, como Atitude 67, Leo Santana, As Bahias e a Cozinha Mineira, Di Ferrero, Sandy, Felipe Araújo, Rodrigo Suricato, Donatto, Mahmundi e Tropkillaz.
Do Sul, a gaúcha Loop Discos também organiza um megaevento para o mundo todo online. Desde a terça-feira (17) até o próximo dia 9 de abril, nomes como Bibiana Petek, Bemquerê, Carla El, Duca Lendeicker, Lucas Silveira, João Maldonado, Nani Medeiros e Rê Adegas, entre vários outros, se apresentarão diariamente, às 22h, com transmissão ao vivo pela conta @LoopReclame no Instagram.
Felipe Cordeiro, acompanhado do cantor e compositor Leoni, também transmitiu uma bela apresentação pelo Instagram. “O show online surgiu muito de uma necessidade emocional”, explica o paraense, que teve concertos cancelados ou adiados em Maceió, Salvador, Brasília e São Paulo, além de suspender a ida à feira portuguesa MIL, onde tocaria na abertura. “Num momento desses, mais recluso, com shows cancelados e com as pessoas assustadas, achei que (a live) seria uma pequena salvação existencial para mim e para os outros. Deu certo, foi curativo!”, comemora.
Como muitos outros artistas, ele estuda uma forma de começar a monetizar com os streamings ao vivo. “Estou entendendo e estudando o que é possível fazer. Por enquanto, estou fazendo lives mais existenciais e políticas. Mas, a médio prazo, precisarei encontrar um modo de monetizar, porque as contas não estão em quarentena.”
A cantora Rhaissa Bittar transformou seu Sarau As Mina Tudo, que aconteceria no dia 31 de março, no Jazz B, em São Paulo, em um evento online, usando a conta do Instagram @sarauasminatudo como base. E até em outros países artistas brasileiros vêm fazendo o mesmo. É o caso da flautista e compositora Leticia Malvares, carioca radicada em Madri, na Espanha — um dos países mais afetados pelo coronavírus no mundo, com mais de 500 mortos e 11,2 mil infectados até a tarde de terça-feira (17), além de um confinamento nacional decretado no último sábado.
Leticia já realizou duas lives tocando de casa, uma delas promovida pelo Divulga Madrid, um projeto que dá espaço a eventos de brasileiros na capital espanhola; a outra, por um coletivo de artistas locais que lançou a iniciativa Yo Me Quedo en Casa Creando. Nesta última, Leticia teve a companhia do músico Roberto Monteiro, com quem divide apartamento. “Muitos de nós já vivemos com outros músicos e, agora que estamos o dia todo confinados, temos a oportunidade de tocar assim, tranquilamente, sem a pressão de ter que cumprir repertórios. Os artistas temos o papel de reforçar a reflexão sobre qual é o lugar da arte no mundo. Para além do entretenimento, a arte se comunica com a alma das pessoas”, ela diz.
A carioca já começou a compor uma nova peça solo para flauta. Com Roberto, está dividindo outras composições. “Temos mais tempo para criar e para manter uma conversa longa, ouvir o que o outro tem a dizer, ouvir a nós mesmos... Acho que sairemos dessa mais resilientes. E com mais contatos. As lives ajudam a expandir a rede, as duas que eu fiz foram impulsionadas por outros grupos e me trouxeram muitos novos seguidores”, completa a artista, que também tem pensado em formas de transformar esse movimento de expansão em monetização.
Para o produtor Pena Schmidt, os artistas se ofereceram em sacrifício num momento grave. “As igrejas não estão nem aí para isso, mas o show business ofereceu sua contribuição (para conter o vírus). Não quer dizer que a música morreu. Pelo contrário, um dos desdobramentos deste acontecimento é que as pessoas ficam mais em casa, ouvem mais música e poderão interagir mais com seus artistas favoritos”, analisa.
“Esse boi de piranha que se sacrificou não é um artista, nem o público, é toda uma indústria com centenas de profissões diferentes ao redor”, continua o veterano produtor, cujo currículo já o colocou em quase todos os postos deste mercado, de gravadoras a grandes casas de show. “Há toda uma discussão neste instante sobre o que vai acontecer, por exemplo, com o mundo da graxa, da técnica. O que eles vão fazer da vida? Trabalham de um show para o outro, não são contratados. O que vai acontecer com o pessoal de locação de som e luz, que vive de montar infraestrutura? E os caras que trabalham na organização, os agentes, curadores, empresários? Os governos precisam se mobilizar para ajudar. É preciso jogar luz sobre isso.”