Ao coibir a transferência de valor, ou seja, a concentração da esmagadora maioria dos ganhos nas mãos das empresas que distribuem os conteúdos na rede, Diretiva de Direitos Autorais Digitais do bloco permitirá uma renegociação nos pagamentos
Por Alessandro Soler, de Barcelona (Espanha)
e Elisa Eisenlohr, do Rio
O Parlamento Europeu aprovou, em votação nesta quarta-feira, a nova Diretiva de Direitos Autorais Digitais do bloco, que dará a autores de músicas, roteiros de TV e cinema, diretores, cantores e músicos novo poder de negociação com as grandes plataformas que distribuem conteúdos na rede. Amazon, YouTube, Netflix, Spotify e outros conglomerados deverão ter de rever os valores pagos aos criadores das obras que oferecem aos usuários, que a nova norma reconhece oficialmente como baixos. A legislação agora aprovada havia sido rechaçada em votação no próprio parlamento de Estrasburgo, no último dia 5 de julho, depois que um forte lobby liderado pelos gigantes da web conseguiu convencer a maioria dos parlamentares de que havia nela cláusulas abusivas.
A votação desta quarta-feira se deu após uma série de debates e revisão do projeto de lei, que, ao voltar à pauta de votação do plenário, terminou com 438 votos a favor, 226 contra e 39 abstenções. Com caráter vinculante entre os países da União Europeia, a expectativa é que a diretiva passe a pautar mudanças nas legislações nacionais dos 28 países que compõem o bloco. Além da abertura à revisão de pagamentos aos criadores, diminuindo a chamada transferência de valor (dos artistas para os gigantes do mundo digital), a nova norma impõe a compartilhadores de links e conteúdos, como as redes sociais Facebook e Twitter, ou o mecanismo de busca do Google a desenvolver e pôr em prática filtros de bloqueio automático para materiais piratas ou sem licença.
Diversas instituições europeias saudaram a aprovação da lei continental, que se deu após semanas de pressão por parte de cineastas, músicos e outros criadores sobre os parlamentares. Um dos palcos mais destacados para os debates sobre o tema foi a última edição do Festival de Veneza, encerrado no último dia 8.
Para os críticos, a nova normativa limita a liberdade da internet, ao estabelecer o que chamam de “censura prévia” a conteúdos e interferir nas negociações de valores entre os distribuidores e os criadores dos conteúdos. Uma opinião não compartilhada por diferentes entidades que representam os artistas, para quem estes, ao dispor anteriormente de poucas armas contra os gigantes da rede, passam a jogar de igual para igual.
“É o surgimento de um novo campo de batalha. Artistas, produtores, titulares de direitos, músicos e outros criadores terão mais liberdade para continuar a produzir suas obras sem o medo de serem explorados sem uma compensação justa”, definiram a Federação Europeia de Diretores de Cinema, a Federação Europeia de Roteiristas e a Sociedade de Autores Audiovisuais, em comunicado conjunto.
A Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores (Cisac) celebrou a aprovação da diretiva. Para Gadi Oron, seu diretor geral, “para os quatro milhões de criadores que a Cisac representa, a Europa traz uma decisão que gerará um efeito propagador ao redor do mundo. O Parlamento Europeu se pôs ao lado dos valores principais que erigiram a cultura europeia e a proteção das indústrias criativas ao longo de séculos. Apesar do mega-ataque de desinformação imposto por grandes companhias tecnológicas, a Europa decidiu abrir caminho na direção de mais justiça aos criadores no mundo digital.”
Presidente do selo Beggars Group, referência europeia da música independente, Martin Mills, que está no Rio para discutir a transferência de valor no Rio Music Market, nesta quarta-feira, também comemora. Ele critica as grandes plataformas, que pagam milésimos de centavos por cada streaming, caso do YouTube. “O YouTube faz muito dinheiro sem compartilhar adequadamente os ganhos. Isso causa desequilíbrio no mercado, porque todos os demais pagam dez vezes mais do que eles”, afirmou, em entrevista ao GLOBO.
Durante o evento, ele voltou a falar do tema, assim como Marcelo Castello Branco, diretor-executivo da UBC e presente ao debate. "Hoje é um dia importante, o início de uma vitória numa questão muito importante, que é a da transferência de valor. Trata-se da possibilidade de revisão de um paradigma ainda vigente no ecossistema digital e que pode representar melhor remuneração para os criadores. E isso não vem sozinho. Nos EUA, o Congresso está para votar o Modernization Act, que discute essas mesmas questões", ele disse, destacando o possível impacto na América Latina, especialmente no Brasil, dessa nova visão europeia e estadunidense.
Nos próximos dias, confira a cobertura em vídeo feita pela UBC durante o Rio Music Market, a conferência anual da música independente, que debate os principais temas do mercado musical contemporâneo, no Centro Sebrae.